RECANTO DAS LETRAS

quarta-feira, 31 de outubro de 2007

ANALISANDO FOUCAULT (PARTE 03): O HOMEM ESTÁ MORTO?

O homem está morto?

L'homme est-il mort? (entrevista com C. Bonnefoy), Arts et Loisirs, no 38,
15-21, junho de 1966, pp. 8-9. Traduzido a partir de FOUCAULT, Michel.
Dits et Écrits. Paris: Gallimard, 1994, vol. I., p. 540-544, por Marcio Luiz
Miotto. Revisão de wanderson flor do nascimento.
[... primeiro pedimos a Michel Foucault que definisse o lugar exato e a
significação do humanismo em nossa cultura. ]

- Cremos que o humanismo é uma noção muito antiga que remonta a Montaigne e bem mais além. Ora, a palavra "humanismo" não existe nos Ensaios. Na verdade, com essa tentação da ilusão retrospectiva à qual sucumbimos muito freqüentemente, imaginamos de boa vontade que o humanismo sempre foi a grande constante da cultura ocidental. Assim, o que distinguiria esta cultura das outras, das culturas orientais ou islâmicas, por exemplo, seria o humanismo. Comovemo-nos quando reconhecemos vestígios deste humanismo noutro lugar, num autor chinês ou árabe, e temos então a impressão de nos comunicar com a universalidade do tipo humano. Ora, não somente o humanismo não existe nas outras culturas, mas está provavelmente na nossa cultura na ordem da miragem. No ensino secundário, aprendemos que o século XVI foi a era do humanismo, que o classicismo desenvolveu os grandes temas da natureza humana, que o século XVIII criou as ciências positivas e que chegamos enfim a conhecer o homem de maneira positiva, científica e racional com a biologia, a psicologia e a sociologia. Imaginamos que, ao mesmo tempo, o humanismo tem sido a grande força que animou o nosso desenvolvimento histórico e que é finalmente a recompensa desse desenvolvimento, resumidamente, que é o princípio e o fim. O que nos admira na nossa cultura atual, é que ela possa ter a preocupação com o humano. E se falamos de barbárie contemporânea, é na medida em que as máquinas, ou certas instituições, nos aparecem como não humanas. Tudo isso é da ordem da ilusão. Primeiramente, o movimento humanista data do fim século XIX. Em segundo lugar, quando se olha ligeiramente as culturas dos séculos XVI, XVII e XVIII, percebe-se que o homem não tem literalmente nenhum lugar. A cultura é então ocupada por Deus, pelo mundo, pela semelhança das coisas, pelas leis do espaço, e certamente também pelo corpo, pelas paixões, pela imaginação. Mas o homem mesmo é completamente ausente. Em As Palavras e as Coisas, quis mostrar de quais peças e quais pedaços o homem foi composto no fim século XVIII e início do XIX. Tentei caracterizar a modernidade dessa figura, e o que me pareceu importante era mostrar isso: não é tanto porque se teve um cuidado moral com o ser humano que se teve a idéia de conhecê-lo cientificamente, mas é pelo contrário porque construiu-se o ser humano como objeto de um saber possível que em seguida desenvolveram-se todos os temas morais do humanismo contemporâneo, temas que são encontrados nos marxismos frouxos, em Saint-Exupéry e Camus, em Teilhard Chardin, resumidamente, em todas essas figuras pálidas da nossa cultura. - Você falou aqui de humanismos frouxos. Mas como você situa algumas formas mais sérias de humanismo, o humanismo de Sartre, por exemplo ? - Se afastamos as formas fáceis de humanismo que representam Teilhard e Camus, o problema de Sartre aparece como completamente diferente. Aproximadamente, pode-se dizer isso: o humanismo, a antropologia e o pensamento dialético estão ligados. O que ignora o homem, é a razão analítica contemporânea que se viu nascer com Russell, e que aparece em Lévi-Strauss e nos lingüistas. Esta razão analítica é incompatível com o humanismo, enquanto que a própria dialética se nomeia acessoriamente de humanismo. Ela se nomeia por várias razões: porque é uma filosofia da história, porque é uma filosofia da prática humana, porque é uma filosofia da alienação e da reconciliação. Por todas essas razões e porque continua, no fundo, uma filosofia do retorno a si mesmo, a dialética promete em certa medida ao ser humano que ele se tornará um homem autêntico e verdadeiro. Ela promete o homem ao homem e, nessa medida, não é dissociável de uma moral humanista. Neste sentido, os grandes responsáveis do humanismo contemporâneo, são evidentemente Hegel e Marx. Ora, parece-me que escrevendo a Crítica da razão dialética, Sartre pôs em certa medida um ponto final, ele fechou novamente o parêntese sobre todo este episódio da nossa cultura que começa com Hegel. Ele fez tudo o que pôde para integrar a cultura contemporânea, isto é, as aquisições da psicanálise, da economia política, da história, da sociologia, à dialética. Mas é característico que ele não poderia deixar cair tudo o que é da competência da razão analítica e que faz profundamente parte da cultura contemporânea: lógica, teoria da informação, lingüística, formalismo. A Crítica da razão dialética é o magnífico e patético esforço de um homem século XIX para pensar o século XX. Neste sentido, Sartre é o último hegeliano, e eu diria mesmo o último marxista. - Ao humanismo sucederá então uma cultura não dialética. Como você a concebe e o que se pode dizer dela agora? - Esta cultura não dialética que está a caminho de se formar é ainda muito balbuciante por diversas razões. Primeiro, porque tem aparecido espontaneamente em regiões extremamente diferentes. Ela não tem lugar privilegiado. Também não se apresentou, de entrada, como uma inversão total. Ela começou com Nietzsche quando ele mostrou que a morte de Deus não era o aparecimento, mas o desaparecimento do homem, que o homem e Deus tinham estranhos parentescos, que eram ao mesmo tempo irmãos gêmeos e pais e filhos um do outro, que Deus estando morto, o homem não poderia não desaparecer, ao mesmo tempo, deixando atrás de si uma monstruosidade. Ela apareceu igualmente em Heidegger, quando tentou retomar a abordagem fundamental do ser em um retorno à origem grega. Apareceu igualmente em Russell, quando fez a crítica lógica da filosofia, em Wittgenstein, quando colocou o problema das relações entre lógica e linguagem, nos lingüistas, e nos sociólogos como Lévi-Strauss. Resumidamente, para nós mesmos atualmente, as manifestações da razão analítica ainda são dispersas. É aqui que se apresenta a nós uma tentação perigosa, o retorno puro e simples ao século XVIII, tentação que ilustra bem o interesse atual pelo século XVIII. Mas não se pode ter um tal retorno. Não refaremos mais a Enciclopédia ou o Tratado das sensações de Condillac[1]. - Como evitar essa tentação ? - É necessário tentar descobrir a forma própria e absolutamente contemporânea desse pensamento não dialético. A razão analítica século XVII era caracterizada essencialmente por sua referência à natureza; a razão dialética do século XIX desenvolveu-se sobretudo em referência à existência, ou seja, ao problema das relações do indivíduo à sociedade, da consciência à história, da práxis à vida, do sentido ao sem sentido, do vivo ao inerte. Parece-me que o pensamento não dialético que se constitui agora não põe em jogo a natureza ou a existência, mas isso que é o saber. Seu objeto próprio será o saber, de tal modo que esse pensamento esteja em posição segunda em relação ao conjunto, à rede geral dos nossos conhecimentos. Ele terá que se interrogar sobre a relação que pode haver, por um lado, entre os diferentes domínios do saber e, por outro lado, entre saber e não-saber. Não se trata de uma empresa enciclopédica. Primeiramente, a Enciclopédia acumulava os conhecimentos e fazia sua justaposição. O pensamento atual deve definir isomorfismos entre os conhecimentos. Em segundo lugar, a Enciclopédia tinha por tarefa de expulsar o não-saber em benefício do saber, das luzes. A nós, temos a compreender positivamente a relação constante que existe entre o não-saber e o saber, porque um não suprime o outro; eles estão em relação constante, apoiam-se um no outro e podem ser compreendidos apenas um através do outro. É por isso que a filosofia passa atualmente por uma espécie de crise de austeridade. É menos sedutor falar do saber e dos seus isomorfismos que da existência e o seu destino, menos consolador falar das relações entre saber e não-saber que falar da reconciliação do homem consigo mesmo numa iluminação total. Mas, depois de tudo, o papel da filosofia não é forçosamente o de adocicar a existência dos homens e prometer-lhes algo como uma felicidade. - Você fala de literatura. Em As Palavras e as Coisas, na margem da arqueologia das ciências humanas, mas no mesmo movimento de pensamento, você esboça, a propósito de Dom Quixote e Sade sobretudo, isso que poderia ser uma abordagem nova da história literária. Qual deveria ser esta abordagem? - A literatura pertence à mesma trama que todas as outras formas culturais, a todas as outras manifestações do pensamento de uma época. Disso nós sabemos, mas o traduzimos comumente em termos de influências, de mentalidade coletiva, etc. Ora, creio que a maneira mesma de utilizar a linguagem numa cultura dada em um momento dado está ligada intimamente a todas as outras formas de pensamento. Pode-se perfeitamente compreender em um só movimento a literatura clássica e a filosofia de Leibniz, a história natural de Lineu, e a gramática de Port-Royal. Parece-me da mesma maneira que a literatura atual faz parte desse mesmo pensamento não dialético que caracteriza a filosofia. -Como assim? - À partir de Igitur[2], a experiência de Mallarmé (que era contemporânea de Nietzsche) mostra bem como o jogo próprio e autônomo da linguagem vem se alojar precisamente onde o homem acaba de desaparecer. Depois, pode-se dizer que a literatura é o lugar onde o homem não cessa de desaparecer em proveito da linguagem. Onde "isso fala", o homem não existe mais. Desse desaparecimento do homem em benefício da linguagem, obras tão diferentes como as de Robbe-Grillet e de Malcolm Lowry, de Borges e Blanchot o testemunham. Toda a literatura está em uma relação com a linguagem que é no fundo a que o pensamento mantém com o saber. A linguagem diz o saber não sabido da literatura.
- As Palavras e as Coisas é aberto com uma descrição de As Meninas de Vélasquez, que se apresenta como o exemplo perfeito da idéia de representação no pensamento clássico. Se você fosse escolher um quadro contemporâneo para ilustrar da mesma maneira o pensamento não dialético de hoje, qual você escolheria? - Parece-me que é a pintura de Klee que representa melhor, em relação ao nosso século, o que pôde ser Vélasquez em relação ao seu. Na medida em que Klee faz aparecer em forma visível todos os gestos, atos, grafismos, vestígios, lineamentos, superfícies que podem constituir a pintura, ele faz o ato mesmo de pintar o saber manifesto e cintilante da própria pintura. Sua pintura não é de arte bruta, mas uma pintura re-significada pelo saber aos seus elementos mais fundamentais. E estes elementos, aparentemente os mais simples e os mais espontâneos, os mesmos que não apareciam e que pareciam não dever jamais aparecer, são os que Klee espalha sobre a superfície do quadro. As Meninas representava todos os elementos da representação, o pintor, os modelos, o pincel, a tela, a imagem no espelho, elas decompunham a pintura mesma nos elementos que faziam uma representação. Já a pintura de Klee compõe e decompõe a pintura nos seus elementos que, por serem simples, não são menos suportados, assombrados, habitados pelo saber da pintura.

ANALISANDO Foucault (PARTE 02): a ética e a obra


Foucault: a ética e a obra*


Um filósofo apesar de si
Não estou convencido de que Foucault queria sempre ser visto como filósofo. Em uma conversa com geógrafos marxistas, ocorrida em 1976, Foucault declarava: "em todo caso, a filosofia, a partir de Descartes, sempre esteve relacionada, no ocidente, com o problema do conhecimento. Não se pode iludir-se... E por mais que se diga que não sou um filósofo, o certo é que me ocupo com a verdade e, apesar de tudo, sou filósofo"[2]. Podemos, então, perguntar: será Foucault um filósofo, apesar dele?
Creio que esse desejo de não ser chamado de filósofo, de guardar esta distância a respeito de si mesmo como filósofo, formava parte de sua prática de pensamento. Isso equivale a dizer que sua relação com a "tradição" não era uma relação de identificação, mas era uma questão aberta, uma questão de prática. Foucault não concebia seu próprio trabalho e nem o de seus predecessores como um todo homogêneo com bordas definitivas ou acabadas, ao contrário, ele investigava as rupturas, as fissuras, as contingências e as re-elaborações no que se apresenta como tradição. O "problema do conhecimento" não se delineia nunca da mesma maneira, e as diversas maneiras de propor este problema têm, elas mesmas, uma história. Trata-se, pois, menos de dar uma resposta definitiva a esta questão que de reinventá-la constantemente. Como disse Blanchot, Foucault era sempre "um homem em marcha".
[3]
A diversidade de "nós", o que estamos discutindo juntos aqui, indica bem a diversidade das relações entre Foucault e a filosofia. Nós, que temos leituras diferentes não só de Foucault, mas também da filosofia. Michel Foucault filósofo não é um só. Mas, quem sabe esta diversidade resulte, já ela mesma, de uma prática filosófica de fio duplo: por um lado, uma relação com aquilo que se dá como "filosófico" e, por outro, com o que não é ou o que não é ainda.
Prática 1: Não supor nem construir uma história geral da "filosofia ocidental", nem tratar de encontrar um lugar para ela. Partir, antes, da idéia de que a tradição não é monolítica e que o mapa das maneiras de pensar é algo que se deve refazer permanentemente. Questionar os esquemas gerais de sua história, dispensá-la, abri-la a outras questões. "Às pessoas que gosto prefiro utilizar... deformar, fazê-las gemer e protestar."
[4]
Prática 2: Sair fora da filosofia, para dizê-lo com as palavras de Deleuze, por a filosofia à prova com as questões que parecem estranhas ou exteriores a ela. Fazer da arte de pensar, uma arte de delimitar novos problemas, ao redor dos quais, se formem conjuntos que não sejam anteriores a eles.
De maneira que, conforme a prática 1 (em suas observações sobre os começos da filosofia contemporânea na França na década de 1930), Foucault distinguia uma filosofia da racionalidade formal de uma filosofia da consciência subjetiva,
[5] a tradição de Cavaillès e a tradição de Sartre. Impressionava-o especialmente o fato de que Cavaillès, que havia dado sua vida à Resistência, houvesse encontrado o compromisso bastante mais simples que os filósofos do compromisso.
Para os filósofos de fala inglesa, habituados a aceitar a crítica de Frege ao psicologismo de Husserl e sua radicalização wittgensteiniana, semelhante distinção poderia parecer trivial. Desde 1935, Cavaillès se interessou por Wittgenstein, Frege e Carnap e, repudiando a filosofia da consciência, estudou os fundamentos da matemática e a teoria dos conjuntos. Os filósofos de fala inglesa não podiam, pois, senão admirar o fato de que Foucault havia tomado o partido de Cavaillès contra Sartre e que havia tratado de sair-se da fenomenologia.
Em troca, esses mesmos filósofos se inteiraram, com assombro, pelos escritos de Foucault da década de 1960 de que a fenomenologia e o positivismo, apesar de seu antagonismo, bem claro, derivam de um fundo "arqueológico" comum; e, ao menos, o que se pode dizer é que se surpreenderam com pela bifurcação descrita em As palavras e as coisas onde o "ser da linguagem" conduz, por um lado Russell e, por outro Freud.
[6]
Como se sabe, Foucault propôs novas leituras de Freud e de Nietzsche: ninguém antes dele havia situado o acontecimento central do pensamento de Freud em sua ruptura com a teoria da degeneração. Ninguém antes dele havia lido Nietzsche em relação com a tradição Bachelard-Canguilhem, com a "nova história" dos Anales, com a questão da ideologia nas lutas da década de 1960 ou também com a história da loucura. Sem embargo, Foucault não era um "nietzscheano"; para ela tratava-se, antes, de reler Nietzsche partindo destas novas questões e não só partindo das questões da década de 1930. Em suma, Foucault queria afrouxar as fronteiras que segmentavam a inteligência filosófica ao introduzir novas questões e ao voltar a pensar aquelas que a história nos tem legado.
Conforme a prática 2, Foucault encontrou essas novas questões em campos tradicionalmente exteriores à filosofia, nos quais os métodos de tratar aos loucos pertencem à história da razão e a arte de construir edifícios pertence à história da ética. Como escrever ao mesmo tempo aos presos e aos filósofos? Em 1975, Foucault explicava: "Para mim, Nietzsche, Bataille, Blanchot, Klossowski representaram maneiras de sair da filosofia", de fazer "permeável e, por tanto, irrisória a fronteira entre o filosófico e o não filosófico".
[7] Porém, para ele, o exterior da filosofia não estava tão somente constituído pelo discurso "literário", mas compreendia, assim mesmo, a medicina do desvio no séc. XIX, assim como a ciência da polícia do séc. XVIII. John Searle, que queria transcrever a arqueologia das enunciações em uma teoria dos speech acts, não contava que Foucault considerasse que a masturbação podia ser objeto de um interesse filosófico? De maneira que, precisamente em seus "ensaios" para abrir a filosofia ao exterior, diria eu que Foucault era filósofo, uma classe de filósofo apesar dele mesmo.

O ethos da filosofia
Em seu prefácio a O uso dos prazeres, Foucault tratou de caracterizar a atitude que tinha a respeito de si mesmo como filósofo e a respeito das tradições filosóficas considerando-as como um ethos, uma maneira de ser filósofo. Sustenta, ali, que o discurso filosófico é sempre ridículo quando quer estabelecer-se como meta-disciplina que fixa as fronteiras legítimas e que ministra a unidade de todas as outras disciplinas. "O que está vivo" na filosofia são antes as tentativas de modificá-la em relação com o que parece estranho à filosofia.
De forma que a obra de Foucault não se desenvolve como uma teoria ou um sistema, está direcionada por periódicas tentativas de reelaboração no que se trata de "de pensar de outro modo o que já se pensava e de perceber o que se tem feito de uma perspectiva diferente e sob uma luz mais clara".
[8] A relação consigo mesmo que se transluz em sua obra, teria, pois, a forma de um exercício pelo qual se chega a ser o que se é ao desprender-se de si mesmo. Aqueles cujo ethos se assimilam a este desprendimento de si, diz Foucault, vivem em um "planeta diferente" daqueles que buscam um ponto fixo de certeza, um caminho autêntico ou uma decisão autêntica. Por isso, na história da filosofia, Foucault não se ata a nenhuma tradição ou a um "nós", mas busca acontecimentos, essa classe de acontecimentos dos quais já não se recobra nunca e que nos transformam sempre. É esta concepção de relação com o si mesmo, como ethos ou como maneira de ser filósofo, que está em jogo na tentativa de Foucault que aponta a reconsiderar as tradições que chamamos éticas.

A ética não é uma moral
A tradição da filosofia ética não nos é dada como um todo unificado. Até o que chamamos de moral judáico-cristã se formou em virtude de uma espécie de collage de fontes pagãs. Múltiplas mudanças afetaram não só os códigos que regulam a conduta, mas a concepção mesma de ética, suas questões centrais, o que a ética supõe verdadeiro sobre nós e as classes de relações que ela supostamente tem com a religião, com a ciência, com a política e com o direito.
Foucault acreditava que aquilo que não se havia estudado suficientemente ou considerado suficientemente na história das origens e das transformações da ética eram as práticas formadoras dos modos de ser. Convinha, então, estudar a história, não da moral, mas da ética. Esse é um tema recorrente em toda a obra de Foucault. Em As palavras e as coisas, Foucault se perguntava se a filosofia podia, ainda, assegurar os códigos morais à maneira das antigas cosmologias (como uma teoria da república, dos objetos políticos ou cívicos): "No caso do pensamento moderno, não há moral possível... o pensamento é em si uma ação, um ato perigoso".
[9]
Esta relação entre pensamento e modo de ser ocupava o centro de seu estudo sobre o tema antropológico na filosofia crítica de Kant. É igualmente esta a questão que orientou sua tentativa de analisar a penalidade, partindo das novas técnicas de "governo" dos indivíduos, técnicas que fizeram da criminalidade tanto um objeto de saber como um modo de ser. Foucault se perguntava se o exercício de poder efetivo não se ocultava sob a ordem jurídica tradicional. Foucault trata de analisar a constituição histórica e material dos sujeitos. No lugar de conceber o sujeito partindo se sua condição política, ele tratou de por no quadro de juízos essa condição e encarar a "produção" do ser, até dos indivíduos.
De maneira que seu modo de conceber a distinção entre ética e moral, difere da distinção neokantiana entre Moralität e Sittlichkeit, oposição sobre a qual se construiu "certo discurso filosófico da modernidade". Pois, para Foucault, não se tratava de incorporar-se em uma bela totalidade natural ou essencial, nem de elevar-se a uma república transcendental racional e normativa. Tampouco se tratava de derivar a solidariedade da racionalidade, nem de recuperar um sentimento perdido da comunidade no seio de uma razão moderna. Tratava-se, antes, de estudar as práticas de si em sua esfera própria e, a partir dali, introduzir a questão do lugar das ditas práticas em uma dada sociedade. Neste sentido, as práticas de si de Foucault se aproximam das formas de vida ordinárias de Wittgenstein, nas quais aquilo que se dá como subjetivo procede de práticas comuns (públicas) transformáveis.
Foucault não se perguntava, então, como as ditas práticas eram veículos das decisões de uma cultura, mas perguntava-se como se poderia explicar que uma cultura lhe havia dado uma determinada posição particular. E porque queria recolocar a questão do ser ético do indivíduo, censurou no Cuidado de Si a idéia vaga do individualismo, invocada para explicar em diferentes épocas fenômenos diversos.
[10] Diz Foucault que convém distinguir as práticas de si, que tomam o indivíduo como objeto de saber e de ação (como no ascetismo cristão), o valor que se atribui ao indivíduo em certos grupos dos quais é membro (como na aristocracia militar) e o valor atribuído à vida privada ou familiar no seio da burguesia do séc. XIX. Foucault também queria distinguir a liberdade individual entre os gregos e a "chatice mais ou menos derivada de Hegel, segundo a qual a liberdade do indivíduo não tem nenhuma importância frente a nobre totalidade da República".[11]
Conceber a ética desde o ponto de vista das práticas de si, permitiu a Foucault um enfoque histórico diferente do postulado pelo pensamento idealista romântico, no qual a constituição do indivíduo passa desde a vontade agostiniana à idéia da vida como obra de arte (descrita por Burckhardt) no Renascimento, para passar logo do cogito cartesiano ao "dandysmo" de Beaudelaire e a confissão analítica. Por o acento na ética e não na moral significava propor a questões das práticas formadoras do indivíduo na relação com o saber, com a política e com o direito modernos.

O pensamento como ética
Se admitimos, pelo menos por hipótese histórica, a distinção entre ética e moral, podemos aplicá-la ao pensamento do próprio Foucault? Mais precisamente, pode-se conceber sua própria prática de pensamento segundo os quatro elementos que Foucault isolou quando se dedicou a estudar a ética como prática de si mesmo?
1. A substância. "O sujeito não é uma substância. É uma forma e essa forma não é sempre, nem em todas partes, idênticas a si mesma..., o que me interessa é precisamente a constituição histórica dessas formas diferentes do sujeito em relação com o jogo da verdade".
[12]
Nesta prática, o que há de ser transformado é a evidência das formas em virtude das quais o sujeito pensa em identificar-se com a verdade; não é a natureza do sujeito o que está em jogo, mas é sua "segunda natureza", não o que está dado, mas aquilo que deixa ao sujeito a possibilidade de dar-se. A substância é o que, no ser do sujeito, está aberto a uma transformação histórica.
2. O modo de subjetivação: é o convite a uma liberdade prática, o que incita a esta transformação. A possibilidade de dar um "novo impulso, o mais vasto possível, a obra sempre inacabada da liberdade".
[13] É a possibilidade de fazer da liberdade uma questão prática e não simplesmente formal, uma liberdade, não dos atos, das intenções ou do desejo, mas a liberdade de escolher um modo de ser.
3. O trabalho ético: os meios de transformação serão os de uma análise crítica que reconstitua as formas do sujeitos em "singularidades transformáveis".
[14] Trata-se de determinar precisamente contra que devemos lutar para liberar-nos e, acima de tudo, para liberar-nos de nós mesmos. Esta é a análise da problematização das "evidências em que se apoiam nosso saber, nosso consentimento, nossas práticas"[15] do qual deriva sempre um "nós necessariamente temporário".[16]
4. O telos: o objetivo desta transformação aberta é a pratica de dizer a verdade, que uma sociedade não pode nem regular nem fazer calar, é a beleza de um traço de si mesmo, e uma atitude crítica a respeito do que nos ocorre e "um desafio a todo fenômeno de dominação".[17]
O trabalho de Foucault, na medida em que todo trabalho filosófico implica um exercício de si mesmo, isto é, uma ética, poderia, pois, resumir-se da seguinte maneira: em nome de uma liberdade prática, dentro daquilo que se dá como formas de experiências possíveis, desenvolver uma análise crítica nominalista como forma de resistência à dominação.

As problematizações
Em seu prefácio a Os usos dos prazeres, Foucault queria, já o dissemos, reconsiderar suas investigações anteriores sob outra luz, a das problematizações. Há uma história do pensamento porque existe uma história dos problemas específicos que o pensamento teve de enfrentar. Que é aquilo que, nas experiências da criminalidade, da enfermidade, da loucura ou da sexualidade se dava de maneira tão problemática que tais experiências chegavam a ser algo que podia e devia ser pensado?
A história foucaultiana da ética não é uma história dos princípios nem de seu modo de legitimação, mas uma história das maneiras de responder a problemas específicos ou singulares. Como se conceberam os obstáculos que se tem de superar para ser bom ou para fazer o que se deve fazer? Como se tem raciocinado o que tem de fazer atendendo ao que se pensa como sendo o mal ou o erro? E mais precisamente, como, partindo de uma análise das problematizações, se pode reconsiderar a tarefa do pensamento em relação com os saberes, com as estratégias da ação [do fazer], com o direito ou com a política?
1. O saber-poder. Como os problemas ou os perigos específicos do si e da sociedade tem chegado a ser objetos de um saber e de uma estratégia possíveis? Essa é a pergunta que formulam as análises de Foucault sobre os sistemas de pensamento nos quais o grande metaconceito é o de "normalidade", uma normalidade que estaria ausente na problematização dos prazeres gregos e que seria específico do racismo "em sua forma moderna, estatal, biologizante".
[18] Como as antigas práticas de si mesmo foram dominadas por este dispositivo normalizador?
2. O direito: Como novos problemas, por exemplo, o seguro contra acidentes, tem chegado a ser o objeto não só de uma nova legislação, mas uma nova maneira de conceber o direito? Há que analisar o direito naqueles pontos em que sua aplicação apresenta problemas. Há que se fazer a história dos estilos do raciocínio jurídico que determinam que classe de objetos podem cair em uma jurisdição que disponha deles. Este é o nominalismo crítico jurídico que propõe François Ewald: não uma filosofia da essência ou da natureza do direito, mas uma história ou das problematizações em virtude dos quais se tem construído uma "experiência jurídica" singular.
3. A política: De que maneira e através de que concepção certos acontecimentos problemáticos se fazem "políticos". Por exemplo, esse acontecimento cujo nome é uma data, 1968.
Para Foucault, a política não é constitutiva das problematizações, pelo contrário, são as problematizações, as que questionam a política e transformam sua concepção. Neste sentido, trata-se menos de achar soluções definitivas aos problemas, do que de saber fazer-los entrar no que se dá como o campo político.
Assim, o declara a questão introduzida por sua análise das problematizações do estado providente-guerreiro (the welfare-warfare state). Como uma nova problematização da vida e da morte, uma nova maneira de governar-se mudaram, não só o funcionamento, mas também a concepção mesma do estado? Como o pensamento "liberal" (as categorias de sociedade civil e estado) surgiu como modo de conceber esta nova biopolítica e como esta, por sua vez, foi problematizada? "Minhas maneiras de encarar as questões políticas é da ordem da problematização, o qual implica no desenvolvimento de uma esfera de ações, de práticas e de pensamento que, segundo me parece, propõem problemas para a política".
[19]
Porém, a análise destes perigos é ela mesma perigosa. Com efeito, essa análise se realiza em situações que escapam ao raciocínio dedutivo-normativo. Por exemplo, quando se vê que há algo que fazer sem que se saiba ainda o que é. Então se abre um espaço, não de dedução, mas de análise e de questionamento, espaço no qual se trata de determinar um perigo que falta, ainda, identificar e ante o qual, se haverá de reagir. A "decisão ético-política" consiste em "determinar qual é o verdadeiro perigo". "Quisera fazer a genealogia dos problemas, das problemáticas. Não quero dizer que tudo está mal, mas digo que tudo é perigoso, o que não é o mesmo. Se tudo é perigoso, então sempre temos algo a fazer".[20]

As possibilidades
A filosofia de Foucault versa sobre o que se pode pensar e o que se pode mudar no que se pensa. O nexo entre o possível e o pensável se remonta a Kant. Foucault quis introduzir o acontecimento ou o sucesso da filosofia crítica e arriscar uma história crítica do pensamento. Pois se a experiência é possível pelas categorias e se as categorias mudam, logo as possibilidades mudam, igualmente.
A tarefa da crítica se converte, pois, na tarefa de inserir os acontecimentos no que se dá como evidência, esses acontecimentos que fazem concebíveis as coisas. Daí que em Arqueologia do Saber, Foucault fale de um a priori histórico, um a priori, não das fronteiras legítimas, mas das possibilidades históricas da experiência. Para Foucault, como para Kant, a liberdade não é uma possibilidade ética entre outras; é a possibilidade mesma da ética. "A ética é a forma deliberada que toma a liberdade".
[21] Sem embargo, contrariamente a Kant, para Foucault, esta liberdade não é supra-sensível, mas histórica. Não procede de uma república racional de sujeitos autônomos, mas procede de um questionamento incessante dos fatos históricos da identidade. Foucault queria fazer uma história, não só do que é verdadeiro ou falso, mas do que pode sê-lo, não do que se tem de fazer, mas do que se pode fazer; não das maneiras de viver, mas das possibilidades de vida. Na perspectiva das possibilidades históricas do saber, da ação e da identidade subjetiva, o saber se delimita, segundo Foucault, pela ciência, o poder pela política e a ética pela moral; e nesta perspectiva das relações entre os saberes, os poderes e os modos de ser nunca estão dados, mas sempre teremos que buscá-los, nunca são essenciais ou necessários, mas sempre são sempre históricos e transformáveis.
Ao historiar a questão crítica, Foucault descobriu uma espécie de impossibilidade que é, não lógica, mas histórica, a impossibilidade não de um círculo quadrado ou de um deus inexistente, mas a impossibilidade do que já não é ou do que ainda não é, ainda que seja possível pensá-lo. Não o que tem sentido, mas o que ainda não tem ou já não o tem mais. É esta coação ou esta exclusão histórica o que o trabalho do pensamento deve fazer ver. Até é lícito pensar que a impossibilidade em questão já estava em gérmen no que Foucault chamava "a ausência de obra" na História da Loucura.
Porém, mais profundamente, o trabalho crítico de Foucault relativo ao campo das possibilidades históricas singulares abre novas possibilidades filosóficas e esboça uma nova maneira de conceber a relação entre filosofia e história, de encarar as relações entre ensaios filosóficos e maneiras de ser; em suma, uma nova maneira de fazer filosofia.
* Este texto foi apresentado no Colóquio RENCONTRE INTERNATIONALE. Michel Foucault Philosophe - Paris, 9, 10, 11, janvier. Paris, Seuil, 1989. (Tradução de Wanderson Flor do Nascimento)
[1] John Rajcham é Professor de Filosofia do Massachussets Institute of Technology – New York University
[2] "Question à Michel Foucault", Hérodote, n. I, janeiro de 1976, p. 74.
[3] Foucault tel que je l'imagine, Montpellier, Fata Morgana, 1986, p. 17.
[4] "Quel corps?" traduzido do inglês, Power and Knowledge, pp. 53-54.
[5] "La vie: l'experiénce et la science", Revue de métaphysique et de la morale, janeiro de 1985.
[6] Les Mots et les Choses. Paris: Gallimard, 1966, p. 312.
[7] "Passe-frontières de la philosophie", Paris: Le monde, 6 de setembro de 1986.
[8] L' usage des plaisirs. Paris: Gallimard, 1984, p. 17.
[9] Les Mots et les Choses, p. 339.
[10] Le Souci de soi, Paris: Gallimard, 1984, p. 56.
[11] "L'ethique du souci de soi comme un pratique de la liberté", Concórdia: Internationale Zeitschrift für Philosophie, n. 6, 1984.
[12] Ibid.
[13] "What is Enlightenment?, Foucault Reader, New York, Pantheón, 1984, p. 46.
[14] "Première préface à L'usage des plaisirs", The Foucault Reader, p. 334.
[15] L'impossible prison. Paris: Ed. du Seuil, 1980, p. 44.
[16] "Interview", The Foucault Reader, p. 385.
[17] "L'ethique de souci de soi come une pratique de la liberté"
[18] La Volunté de Savoir. Paris: Gallimard, 1976, p. 197.
[19] "Interview", The Foucault Reader, p. 384.
[20] "Interview", The Foucault Reader, p. 343.
[21] L'ethique du souci de soi comme une pratique de la liberté.

ANALIZANDO FOUCAULT( PARTE 01)

A busca pelo falo, a subjetivação masculina ou a heterossexualização como moral homossexual.
"Je ne suis jamais. Je deviens." ( Eu não sou jamais. Eu me torno)André Gide

Se, nas palavras de Simone de Beauvoir, "ninguém nasce mulher" (1980, p. 9), creio que tampouco alguém nasce homem. Mais do que um papel pronto que os que nasceram com pintos são obrigados a carregar, o lugar do masculino é um lugar que deve ser construído e constituído a partir de formas de subjetivação que têm como fundamento a busca pelo falo. Para deixar de ser esse devir-pinto, ser que ainda não cumprir o seu lugar destinado de homem, tão logo apresente uma sexualidade, ele deve confirmar o seu lugar sexual apresentando um desejo pelas mulheres, que, antes de ser um desejo corporal-afetivo, é um desejo político. Para conquistar o falo, o homem deve se relacionar com esses seres castrados ratificando assim o seu lugar de poder: agora sim ele é um sujeito, já que pode tornar o outro um objeto. Ser homem é, acima de tudo, uma prática. É fácil perceber a necessidade desse movimento de sujeição se observarmos um grupo de adolescentes do sexo masculino. Uma das maiores ofensas que podem existir dentro desse grupo é ser chamado de punheteiro, aquele que se mostra incapaz de conseguir uma mulher para satisfazer seu desejo sexual e tem que recorrer à masturbação, ou de viado, aquele que desonra o seu devir-pinto se tornando um objeto, um passivo, uma mulher, nas relações com outros homens.É intrigante perceber que a sexualidade, antes de ser um movimento de busca de prazer e satisfação de um desejo, é uma face de uma moral masculina que nos obriga a apresentar um determinado desejo. A heterossexualidade, então, acaba-se por se tornar mais uma preocupação política homossexual de afirmação do seu lugar numa moral viril do que a manifestação de um desejo físico-afetivo. É claro que pode existir também um movimento de atração, mas provavelmente este é construído depois e a partir dessa necessidade cultural e moral que obriga esse devir-homem a apresentar uma preocupação de subjetivação. Pensando novamente na masturbação, gostaria de especular agora o movimento cultural que cria a própria lógica do onanismo (ver Foucault, 1988). Por que a figura da criança onânica é duramente reprimida? Será mesmo para que esta prática seja eliminada ou será que é para que, pelo contrário, esta seja criada? A masturbação de fato só passa a existir quando surge um discurso sobre ela. Antes da repressão acontecer, a criança do sexo masculino que tocava em seu pênis sentindo prazer simplesmente tocava em seu pênis sentindo prazer, só depois de denominado e qualificado pela voz pedagógica e moral que o reprimiu é que realmente passa a se existir o ato de se masturbar. E o mesmo acontece com a menina que antes se tocava sentindo prazer e que passa então a ser reprimida por está fazendo um ato que é um simulacro do sexo, de uma penetração. Esse discurso que reprime tem como justificativa o sexo, o ato sexual: masturbar-se não é simplesmente tocar numa área proibida, mas estar realizando um ato de uma aprendizagem sexual que não está na hora certa de acontecer. Com isso, esse foco repentino aos órgãos sexuais não tem como objetivo evitar uma sexualidade precoce, mas trazer à criança a consciência que ela tem um órgão sexual e que este serve para fazer sexo, ela é sexualizada. Mais do que ter confirmado o seu gênero, essa criança é genitalizada. Refazendo essa genealogia da descoberta do sexo, ou da criação do próprio sexo, focando principalmente no sexo masculino - já que numa moral viril o sexo feminino é simplesmente a conseqüência dele - temos o seguinte processo: a criança que explorava o seu prazer nas áreas genitais soube que essas áreas eram genitais e que não deviam ser tocadas por que eram áreas do sexo; essa repressão fez esse movimento de busca de prazer se tornar algo proibido e assim esse movimento é banido para o foro íntimo e passa ser realizado ou sozinho, escondido, longe da presença pública com ares de culpa, ou junto de outros que também se masturbam escondidos; entrando na adolescência é-se bombardeado por discursos, por um lado os que consideram a masturbação um movimento natural de aprendizagem sexual e por outro os que a desqualificam como uma incapacidade do menino de conseguir alguém para realizar o seu desejo. Em outras palavras: o tocar o pênis buscando sentir prazer não é entendido como uma descoberta do corpo, mas é problematizado como um ritual de entrada na vida sexual - a masturbação como simulacro do outro, da mulher, do objeto. Está criada uma necessidade política e uma problematização moral, uma ética a respeito do sexo. Esses seres genitalizados, então, necessitam se subjetivar para assim conseguir voz nessa moral de homens. Para se subjetivar eles precisam confirmar seu sexo num movimento de construção pessoal, de prática de si, não há melhor palavra para isso do que fazer sexo. No ato sexual o homem mostra a sua posição superior quando come, fode, possui e domina a mulher, ele faz seu sexo, ele confirmar o seu lugar, um sujeito, e define o lugar do outro, um objeto. O sexo da mulher então se coloca a mercê do homem, do ato sexual, do momento em que alguém faz sexo com ela ou que ela é desejada para essa função. Como nasceu culturalmente castrada, a mulher não pode se tornar um sujeito, então a única maneira dela se encaixar nessa moral de homens é como um objeto, como um segundo sexo. Dentro dessa moral, essa é a sua única maneira de ser. Talvez por isso a lésbica seja a figura que mais se encontra à parte dessa moral masculina, a lésbica é aquela que não é, é aquela que não têm sexo dentro dessa moral, já que as lésbicas não são mulheres (Wittig, 1980) embora tenham nascido castradas. Vê-se isso na própria História e nos seus registros: "não se fala, logo não existe" (Navarro-Swain, 2000, pg. 19) uma relação lesbiana. "As mulheres homossexuais não tinham direito a um nome, logo, à existência." (idem). Contudo, tende-se a moralizar a lésbica. Tanto a enquadrando na lógica heteronormativa a partir da dualidade butch e femme[1] , onde se mantém uma lógica heterossexual mesmo a butch se tornando um pastiche do lugar homem; como na objetificação das próprias lésbicas que faz com haja um olhar de desejo para essa relação - o famoso desejo masculino de transar com duas mulheres. As lésbicas só são, só passam a ser e a existir dentro dessa moral e desse mundo moral quando existe esse olhar que as vêem como um pastiche de sujeito ou como um objeto desejável em uma aventura sexual. Mesmo assim, as lésbicas talvez sejam hoje o ponto mais subversivo e marginal dessa sexualidade viril. A moral ainda não está completamente convicta que ser lésbica é uma maneira de ser. Os gays, ao contrário, não possuem nem um ar de contracultura. São devires-pintos que se enquadraram perfeitamente nessa moral masculina. Tanto quando se subjetivam ratificando seu lugar de homens - gays, porém ativos -, como quando são ratificados no ato sexual com outro homem se igualando ao objeto mulher como passivos. Obviamente os primeiros são melhores aceitos, já que existe uma cultura que não condena a relação puramente sexual com outra pessoa do sexo masculino quando se é ativo. Esses, muitas vezes, nem são considerados gays. Mas com os passivos, que são visto como seres que desejam ocupar o lugar da mulher, existe uma manifestação de ódio por eles não honrarem o seu devir-pinto ao não ocupar o seu lugar de homem. Essa homofobia, porém, é uma conseqüência do mesmo olhar que menospreza e castra as mulheres. Essa homofobia é uma manifestação da própria moral homossexual, é uma manifestação da misoginia dessa moral. É nítido o quanto essa moral nos engole, moral que além de trazer uma obrigação política, cria até a nossa preocupação ética. Moral que fundamenta a nossa relação conosco mesmos e com os outros. Moral que constitui a nossa identidade, a forma que somos vistos e que nos vemos. Moral que nos faz ser e que nos faz seres. Como então subverter essa moral? Como se colocar a parte dessa ordem homossexual que nos obriga a nos heterossexualizar, que nos obriga a sexualizar e a nos sexualizar, que nos obriga a ser sexo e fazê-lo? Talvez a melhor forma seja abrir mão desse, abrir mão do gênero, abrir mão do sexo, abrir mão da identidade, abrir mão da sexualidade e do fazer sexo. Abrir mão das identificações, das predestinações, das práticas que nos nomeiam e das máscaras com as quais somos obrigados a fazer coreografadas performaces. Abrir mão de ser, enfim. Ser, talvez, seja a melhor forma de compactuar com essa moral. Ser feito, ser fazendo, fazendo ser e até mesmo sendo diferente. O não-ser talvez seja o que possa existir de singular. Não ser, estar à margem desse engessamento moral, estar à parte dessa cultura de lugares. Não ser e só não sendo poder agir contra essa cultural, criando cultura, mas não mais a sendo. Não ser nada, um não-ser que pode ser tudo, um tudo indefinido e longe das máscaras prontas, uma cultura nova, uma cultura à parte e não identificada. O não-ser que é máscara fluida, que é performance inédita, que é manifestação do não-dito e do indizível. É difícil imaginar, porém, que, depois de já subjetivados, os sujeitos dessa moral queiram deixar de ser. Quando já sujeitos, torna-se culturalmente fácil manter essas práticas do sexo, essas práticas políticas de manutenção da voz moral, manter a heterossexualidade continuando a fazer mais objetos e permanecendo, assim, com a moral homossexual intacta. Se a lógica da subjetivação masculina é regida pela violência, pela objetivação do outro e pela criação de femininos, já que tornar-se homem é tornar outros indivíduos mulheres, por que razão se esperaria que os homens, os sujeitos, se incomodassem com a violência e a objetivação do outro? Por que se esperaria que eles abrissem mão de suas formas de ser? Por piedade, por culpa, por comiseração? Nenhuma resposta ainda me parece clara. Abrir mão da identidade sexual talvez seja um caminho interessante para desconstruir essa moral sexualizadora. Esse caminho, porém, também é um caminho viril; pois, como se se torna homem enquanto se é tornada mulher, esse caminho só é possível para homens. Não cabe ao feminino escolher se terá ou não uma identidade, a identidade o engole. Só os homens, depois de devidamente subjetivados, podem abrir mão da identidade. Talvez o caminho então esteja na especulação dessa moral. Analisar remexe as verdades, expõe o sólido e, com ele, as fissuras. Criticar as práticas sexuais, buscar as origens do sexo e desmentir as essências talvez seja se colocar à margem desse moral, à margem dessa forma de ser que é entregue os indivíduos de forma tão clara. Mostrar as construções desconstruindo o que já parece ter nascido feito, pois ser é uma prática, uma construção de si. Desconfiar dessa moral e de si mesmo como integrante dela pode abrir espaço para uma nova ética, para uma nova forma de se ver dentro desse moralismo sexual engessado, dessa cultura sexual e sexualizadora. Só assim parece nascer uma nova problematização de si que possibilitaria a mudança das práticas, a mudança das funções, a mudança das performances e mudança dos tornar-se. Só assim deixaríamos de ser, de ter que ser e de se ver tendo sido feito e, assim, não mais seres, poderíamos buscar novas formas de viver não mais sendo apenas sujeitos ou objetos de uma moral engessada. Mais do que buscar ser de outra forma, buscar formas novas de ser. Descontruir as opções que nos foram dadas, estar à parte delas e criar novas opções. Novos caminho e talvez uma nova busca.