RECANTO DAS LETRAS

quinta-feira, 27 de março de 2008

ANTIGAS CIVILIZAÇÕES NA AMAZONIA(ARQUIOLOGIA)


Fragmentos do passado

Cerâmica indígena revela que o coração da Amazônia, hoje um vazio demográfico, já abrigou comunidades vastas e complexas antes da chegada dos europeus


Cerâmica fabricada pela cultura manacapuru

Ricardo Zorzetto, de Manaus,Junho 2007




As comunidades indígenas que habitaram a Amazônia Central nos quase dois milênios que antecederam a chegada dos europeus eram formadas por grupos que se fixavam por dezenas a centenas de anos próximos às margens dos rios e já não perambulavam tanto pela floresta em busca de alimentos. Em uma forma inicial de agricultura, cultivavam mandioca, milho e possivelmente outras plantas domesticadas na Amazônia – como o abacaxi ou a pupunha. Também pescavam e caçavam pequenos animais no alto das árvores, uma vez que por ali ainda hoje são raros os bichos no nível do chão. Com interrupções mais ou menos breves, grupos de quatro culturas indígenas se sucederam em comunidades que, nos períodos mais prósperos, chegaram a reunir alguns milhares de pessoas.
Nessa época sobre a qual não há registros históricos, o grau de organização social dos grupos indígenas era bastante variável, como se pode inferir das escavações iniciadas em 1995 pela equipe de Eduardo Góes Neves, do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (USP). É certo que as culturas pré-coloniais que viveram entre 2.300 e 500 anos atrás na Amazônia Central, região que abrange os principais afluentes do rio Solimões no estado do Amazonas, jamais atingiram a estrutura e a sofisticação de outras civilizações contemporâneas como a maia e a asteca, na América Central, ou a inca, na cordilheira dos Andes, dizimadas pelos conquistadores espanhóis e pelas doenças que trouxeram para as Américas. No coração da Amazônia brasileira, nem sempre as comunidades indígenas se constituíam segundo um padrão de complexidade crescente – bandos, tribos, cacicados e civilizações –, proposto há mais de 50 anos por um ramo da antropologia norte-americana chamado neoevolucionismo, que via na civilização ocidental seu mais alto grau de desenvolvimento.
“Há sinais de que nesses dois milênios existiram por ali tribos e possivelmente cacicados, em que um líder exerceria poder sobre várias aldeias”, diz Neves. Na Amazônia Central, essa complexidade variou segundo a época. Alguns grupos cresceram e atingiram certo grau de organização, mas, próximo à chegada dos colonizadores, começaram a diminuir até quase desaparecer. “É um quadro bem mais complicado do que se imaginava, e essa é a beleza da Amazônia”, comenta Neves, que até recentemente trabalhou com os arqueólogos norte-americanos Michael Heckenberger, da Universidade da Flórida em Gainesville, e James Petersen, morto em 2005 durante um assalto perto de Manaus.
Complexidade - Não se deveria estranhar tal variedade. Afinal, a Amazônia é um mundo de complexidade. Quem toma um avião de Brasília para Manaus sobrevoa por mais de duas horas a densa vegetação que se esparrama por todos os lados até onde a terra se confunde com o céu. É de 11 mil metros de altitude que se tem uma idéia mais precisa da imensidão da floresta: são 7 milhões de quilômetros quadrados de mata fechada que só deixa 10% da luz solar chegar ao chão. Metade dela está em território brasileiro – cobre pouco mais de um terço do país – e vem sendo vorazmente corroída em suas bordas por pastagens e plantações de soja que empurram madeireiras clandestinas mata adentro. Do alto, parece única e homogênea. Mas o que a ciência já descobriu mostra que não é. Como quase tudo no Brasil, a Amazônia é múltipla. São várias as formações florestais, que ora absorvem mais carbono do que lançam para a atmosfera, ora devolvem mais do que tomam para si. Também é diversa a distribuição de animais e a fertilidade do solo, assim como foi variado o padrão de ocupação humana da floresta antes da chegada dos europeus, como revelam as pesquisas de Neves.
Em 12 anos de trabalho em uma área de 900 quilômetros quadrados próxima a Manaus, o grupo do arqueólogo da USP vem ajudando a reescrever a história da Amazônia pré-colonial. Ou, ao menos, colocando em questão conceitos que prevaleceram por mais de meio século entre círculos da arqueologia e da antropologia no Brasil e no exterior. Com base no que encontrou, Neves já visualiza com bom nível de detalhe como foi entre 2.300 e 500 anos atrás a vida no interior da Amazônia, mais precisamente na calha do turbulento Solimões e do sereno Negro, pela primeira vez investigada em profundidade.
Essas novas informações devem contribuir para que os arqueólogos comecem a ver o passado da Amazônia brasileira – uma região que abarca os estados de Rondônia, Roraima, Amapá, Acre, Pará e partes do Mato Grosso e Tocantins – como um mosaico de culturas com diversos graus de evolução, e não mais um gigantesco bloco homogêneo. Por muito tempo, prevaleceram visões antagônicas a respeito dos primeiros grupos humanos que viveram por ali. Segundo uma dessas visões, as comunidades ancestrais amazônicas jamais teriam reunido mais do que algumas dezenas de indivíduos. Embora rica em diversidade de plantas e animais, a floresta seria um ambiente com pouca disponibilidade de comida e desfavorável à agricultura, por causa do solo pobre em nutrientes, como defende desde os anos 1950 a norte-americana Betty Meggers, pioneira nas escavações da Amazônia.
Essa escassez de alimento impediria as comunidades ancestrais de crescerem e se tornarem numerosas a ponto de as pessoas assumirem papéis sociais distintos e desenvolverem uma cultura mais sofisticada, capaz de produzir cerâmicas ricamente ornamentadas. Uma das principais autoridades na pré-história amazônica, Betty Meggers tirou suas conclusões a partir do que observou na Ilha de Marajó, no Pará, a cerca de 2 mil quilômetros de Manaus. Para ela, os índios marajoaras, autores de cerâmicas coloridas elaboradas, descenderiam de uma cultura original da Colômbia ou do Equador e seriam uma exceção à regra.
Na década de 1970, outro arqueólogo norte-americano, Donald Lathrap, sugeriu o oposto. Sem nunca ter pisado terras brasileiras, comparou cerâmicas produzidas nos Andes com a dos povos amazônicos, e propôs que a Amazônia Central tivesse sido o principal centro de inovação cultural sul-americano, com influência até sobre o desenvolvimento das primeiras civilizações andinas, além de ter sido o berço da agricultura nessa parte do continente.
As generalizações de Meggers e Lathrap geraram modelos panorâmicos para a ocupação da Amazônia, mas que deixam de lado detalhes importantes. “Ainda se sabe pouco sobre o passado da Amazônia”, reconhece Neves. “O que se diz de lá tem por base trabalhos feitos no Pará, no Amapá, no Mato Grosso e, mais recentemente, no Amazonas.”
Terra preta - Esse debate, um dos mais acirrados da arqueologia nacional, levou Neves, Heckenberger e Petersen a voltarem seus olhos para o coração da Amazônia. Numa viagem a Manaus em 1994, Heckenberger pediu a um barqueiro que lhe mostrasse o que geólogos e arqueólogos chamam de terra preta. Esse solo cinza-enegrecido, que se destaca da terra arenosa e pardacenta da Amazônia, é bastante fértil e costuma indicar áreas de ocupação humana antiga. Alguns minutos de barco pelo rio Negro, Heckenberger avistou uma imensa mancha de solo enegrecido, coberto por uma plantação de bananas e mandioca. No ano seguinte, o trio iniciou a exploração dessa área próxima ao igarapé Açutuba.
Ao longo de dois meses eles mapearam o sítio Açutuba, uma faixa de 3 mil metros de extensão por 300 de largura, tamanho de 90 quarteirões de uma cidade. De lá para cá, identificaram quase cem sítios arqueológicos de dimensões variáveis – os menores têm área de quatro quarteirões – e até o momento escavaram sistematicamente dez deles.
Camadas de terra preta com espessura entre 70 centímetros e quase 2 metros preservaram vasos, urnas funerárias e cacos de cerâmica fabricados por povos que viveram ali entre centenas e milhares de anos atrás – em alguns pontos, por até 300 anos seguidos. A análise de pouco mais de cem amostras pela técnica de datação por carbono 14, que permite estimar com uma precisão de dezenas de anos a idade do material, revela que a presença humana na Amazônia Central é antiga e descontínua. Uma ponta de lança esculpida em uma rocha muito dura amarelo-avermelhada, o sílex, tem cerca de 7.700 anos. Mas os vestígios das comunidades indígenas somem e só reaparecem cinco milênios mais tarde, quando surge uma cerâmica bastante elaborada – pintada em vermelho, preto e branco e com incisões próximas à borda –, típica de um povo que a equipe de Neves denominou cultura açutuba, que ocupou a região por quase dez séculos, até 1.600 anos atrás.
O ressurgimento da presença humana na Amazônia Central coincide com um período em que a temperatura do planeta aumentou e a Amazônia voltou a se expandir depois de ter encolhido por milhares de anos. “Nesse período os rios subiram, possivelmente ocultando áreas de ocupação mais antiga”, diz Neves.
Na mesma época em que começam a rarear os sinais da cultura açutuba, aumenta nos sítios uma cerâmica atribuída à cultura manacapuru, que durou até 1.100 anos atrás e deixou as cores de lado, enfeitando seu trabalho apenas com desenhos geométricos. Quase simultaneamente, um povo que fazia vasos e urnas sem cores, mas com bordas reforçadas e apliques em formas humanas ou de animais, ocupou por sete séculos a Amazônia Central até ser aparentemente expulso da região pelos autores de um quarto tipo de cerâmica chamada guarita – adornada em preto, branco e vermelho, semelhante à dos marajoaras. Os vestígios de cerâmica guarita indicam que, por volta de 1.800 anos atrás, esse povo migrou de uma região no Pará situada cerca de 300 quilômetros a leste de Manaus rumo à Amazônia colombiana, no extremo oeste. No caminho, afugentavam quem estivesse pela frente.
Na opinião de Neves, os índios guaritas podem ter visto na terra preta – formada pela deposição de restos de alimentos, excrementos e outros compostos orgânicos pelas três culturas que viveram antes por ali – o local ideal para plantar roças temporárias. Em três dos sítios escavados ele encontrou sinais de que pode ter havido conflito entre as culturas que viveram na região: valas com 2 metros de profundidade e até 150 metros de extensão protegiam as aldeias. Dois desses fossos ainda preservam indícios de cercas de estacas pontiagudas.
Em conjunto, os vestígios da região indicam presença humana por longos períodos, com apogeu entre 1.400 e 800 anos atrás. Nessa época, algumas comunidades podiam abrigar milhares de pessoas, até mesmo com diferenciação social – tumbas construídas com cacos de cerâmica sugerem divisão de trabalho, comum onde há hierarquia do poder.
O pesquisador da USP é o primeiro a reconhecer os limites do próprio trabalho. “É muito arriscado fazer essas afirmações para uma região tão vasta como a Amazônia Central com base nos achados de apenas dez sítios arqueológicos.” Mas é o que se conhece de mais preciso até o momento. “Estamos ajudando a construir um conhecimento que pode mudar daqui a dez ou vinte anos.”
Neves espera checar essa hipótese da chamada expansão guarita em outra área da Amazônia Central onde começou a trabalhar mais recentemente. Em 2002, ele foi convidado pela Universidade Federal do Amazonas (Ufam) e pela Petrobras para acompanhar a instalação de um gasoduto de 400 quilômetros de extensão que liga a maior reserva de petróleo nacional em terra, no município de Coari, à cidade de Manaus. É que no início das obras equipes da Petrobras encontraram vestígios de um sítio arqueológico em Coari. Desde então foram identificadas outras 41 áreas ocupadas por antigos povos da Amazônia, que vêm sendo estudadas por um grupo coordenado por Neves no programa Potenciais Impactos e Riscos Ambientais na Indústria do Petróleo e Gás no Amazonas (Piatam), conduzido pela Ufam e pela Petrobras com o objetivo de reduzir possíveis impactos ambientais decorrentes do transporte de petróleo na Amazônia.
Se Neves estiver certo, a passagem dos guaritas varreu as outras comunidades de boa parte da Amazônia Central três séculos antes da descoberta das Américas. Quando Cristóvão Colombo alcançou o Caribe em 1492, a serviço da Coroa espanhola, de 2 milhões a 4 milhões de nativos sul-americanos viviam na Amazônia. Hoje as comunidades indígenas na região devem somar umas 170 mil pessoas: a maior parte habita áreas próximas à Venezuela, ao norte, ou ao Mato Grosso, ao sul, e um terço se concentra em Manaus.
Projeto Cronologias regionais, hiatos e descontinuidades na história pré-colonial da Amazônia.
LINK:

quarta-feira, 26 de março de 2008

Descoberta sociedade amazônica pré-colombiana



Descoberta sociedade amazônica pré-colombiana
Por Mário Osava*
O brasileiro Carlos Fausto, membro da equipe responsável pela descoberta,
explica ao Terramérica como as evidências arqueológicas rompem com o mito de que
a Amazônia era uma região virgem até a chegada dos europeus.

RIO DE JANEIRO.- Um estudo publicado esta semana pela revista norte-americana Science conclui que um povo pré-colombiano modificou uma das regiões menos conhecidas da bacia amazônica: o alto do Rio Xingu, ao norte do Estado brasieliro de Mato Grosso, no limite sudoeste da Amazônia. A pesquisa, dirigida pelo arqueólogo norte-americano Michael Heckenberger, da Universidade da Flórida, acaba com a noção de que a Amazônia era uma região selvagem virgem quando os europeus chegaram à América e que a pouca fertilidade de seus solos tornava impossível o assentamento maciço de povos. A área do alto Xingu começou a ser ocupada por indígenas kuikuro nos séculos IX e X, segundo evidências em cerâmica, material orgânico e outros objetos. As descobertas arqueológicas indicam a existência de “aldeias imensas, rodeadas de valas e paliçadas, formando uma estrutura defensiva”, durante os séculos XIV, XV e início do século XVI, explicou ao Terramérica o etnólogo brasileiro Carlos Fausto, membro da equipe responsável pela descoberta. Os últimos achados revelam um plano assombroso: 19 aldeias pré-colombianas ligadas a assentamentos menores nos arredores. A distância entre cada uma era sempre de três a cinco quiolômetros e estavam ligadas por caminhos extremamente bem traçados, de até 35 metros de largura. Isto provaria que não se tratou de uma concentração de muitos indígenas em uma aldeia que depois se mudaram para outra, mas que todas foram povoadas simultaneamente e mantinham uma comunicação regular, explicou Fausto. A estrutura defensiva não se destinava a proteger a aldeia das outras, pois isso não justificaria estradas tão grandes. "Isto realmente nos comoveu”, disse Heckenberger no artigo da Science, pois implicava uma sociedade indígena muito maior e complexa do que qualquer outra existente hoje em dia na Amazônia. Entretanto, suas dimensões exatas são difíceis de serem determinadas. Por meio do estudo de fragmentos de cerâmicas, os limites das aldeias e a estimativa da densidade dos povoados atuais, a equipe calculou que cada assentamento deve ter sido habitado por 2,5 mil a cinco mil pessoas. Nas últimas duas décadas, os arqueólogos acumularam evidências provando que partes da Amazônia estiveram povoadas mais densamente antes da chegada de Cristóvão Colombo à América, em 1492, e que foram modificadas pelos humanos. Porém, nunca se havia trabalhado na região do alto Xingu, afluente do Amazonas. Esta investigação encontrou uma região profundamente transformada nos últimos mil anos por uma densa população de agricultores que viviam em uma rede de aldeias muito bem planejada. Embora existissem pesquisas sobre povos que deixaram seus sinais na Amazônia, a maioria dos especialistas acredita que sociedades maiores e mais complexas estavam restritas às maiores planícies relativamente férteis da zonas baixas. Este não é o cenário que surge das terras altas do Xingu, onde desde 1996 Heckenberger rastreou sinais de plantações e aldeias em uma área de mil quilômetros quadrados. Primeiro com facões e depois com receptores do sistema via satélite Global Positioning System, a equipe encontrou canais, pontes e caminhos. O grupo é uma mistura pouco comum de disciplinas e conhecimentos. Além de Fausto, do Museu Nacional de Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, a equipe é integrada pela antropóloga lingüista Bruna Francetto, especializada em idiomas indígenas, e dois líderes da etnia kuikuro. Imagens de satélite e fotos aéreas assinalam como os kuikuro usavam a floresta próxima. Estas florestas não são virgens ou primárias, e foram jardins cultivados pela população, com “interferências expressivas”, explicou Fausto. “Isso não significa que houve destruição da floresta, mas exploração sustentável segundo os dados obtidos, sendo necessária mais investigação”, acrescentou. As modificações na floresta apontam para um uso por longo tempo, com técnicas cuidadas, muito diferentes do cultivo mecanizado. “São práticas mantidas até hoje pelos kuikuro, que deixam áreas intactas de florestas com formação de pomares que refletem a plantação de pequi”, árvore típica que produz um fruto oleaginoso e aromático, utilizado como condimento no arroz e para fazer licor. “Há cerca de 15 variedades de pequi na área estudada, sugerindo um processo de domesticação, uma hipótese a ser comprovada”, acrescentou Fausto. As áreas que foram praças de aldeias, por exemplo, estão cobertas de pastos, e certas variedades de árvores crescem sobre os antigos caminhos ou edificações agrícolas abandonadas. “O ponto é que em 1492 a influência humana havia se propagado essencialmente a toda a área. Nada nela era completamente natural”, afirma Heckenberger. Os dados lingüísticos permitem estabelecer hipóteses sobre como foi povoado o alto Xingu, formando um arco de migrações a partir do Mar do Caribe, que passa pelas costas da Venezuela, Guianas, Rio Negro (no extremo noroeste do Brasil), Peru e planícies da Bolívia, até chegar ao atual Estado do Mato Grosso. “O perfil cultural da população atual é parecido com o do séculoo IX. As aldeias são versões menores das que existiam antes da chegada dos brancos (europeus), o mesmo ocorrendo com as estradas, agora de dois a quatro metros de largura e de um ou dois quilômetros de extensão”, disse Fausto. As evidências indicam que outras áreas amazônicas podem ter sido muito povoadas antes da colonização, uma hipótese até agora negada pelo argumento de que as florestas amazônicas constituem um ambiente pobre, que limitou a população local. No entanto, o vale do Amazonas é fértil e as inundações temporárias deixam nutrientes no solo que teriam servido de base para uma agricultura de grandes proporções, pelo menos nas margens, afirmou Fausto. Os irmãos indigenistas Orlando, Cláudio, Leonardo e Álvaro Villas Boas conduziram expedições à região em 1940 e 1950 e conseguiram criar, em 1961, o Parque Nacional do Xingu, uma vasta área reservada a vários grupos, incluindo os kuikuro. Na mesma área foram identificados 13 sítios arqueológicos, mas somente quatro estudados intensamente. “O problema é que a arqueologia no Brasil sofre deficiências de informação e recursos, talvez o impacto de um artigo publicado na Science abra novos caminhos”, manifestou Fausto.

As Cidades Perdidas da Amazônia

















"Durante 500 anos, os exploradores têm tentado descobrir cidades perdidas na região do Amazonas.






"Ao contrário do que se dizia, o Brasil tinha sociedades complexas
antes da chegada de europeus"







Na escola, os livros de História ensinam, rapidamente, que havia três grupos indígenas com sociedades avançadas na América pré-colombiana, até 1492: astecas e maias acima do Equador e incas aqui nos Andes. Exibindo cidades com rica arquitetura erigida em pedra, domínio sobre a agricultura, hierarquia social e certos conhecimentos científicos, esses povos, cada um à sua maneira e com suas particularidades, costumam ser agrupados na coluna das "civilizações" conquistadas - destruídas, talvez seja o melhor termo - pelas armas de fogo e doenças trazidas pelos primeiros colonizadores europeus do século 16. São a luz que se apagou com a chegada do homem branco. Aos demais povos ameríndios, inclusive os do Brasil, igualmente vítimas do desembarque dos novos senhores vindos do Velho Mundo, restou a imagem de sociedades primitivas, das trevas, sem refinamento cultural ou marcantes distinções de classes, composta por pequenas aldeias isoladas umas das outras onde imperava o nomadismo.Enfim, representavam o atraso - perto do esplendor imperial de seus contemporâneos andinos e centro-americanos.Recentes descobertas arqueológicas em pelo menos dois pontos distintos da Amazônia brasileira sugerem que astecas, maias e incas não eram os únicos a ter o monopólio das sociedades complexas na época do desembarque do navegador Cristóvão Colombo. Nos últimos anos, intensos trabalhos de campo conduzidos por pesquisadores nacionais e do exterior no Alto Xingu, no norte do Mato Grosso, e na confluência dos rios Negro e Solimões, a cerca de 30 quilômetros de Manaus, no Amazonas, indicam a existência de grandes e refinados assentamentos humanos, habitados simultaneamente por alguns milhares de pessoas, nessas áreas 500 anos atrás - ou até mesmo antes disso.As evidências mais espetaculares de ocupações dessa magnitude - um feito só possível com a adoção de um estilo de vida sedentário e de práticas que alteravam a floresta nativa e possibilitavam a adoção de uma agricultura razoavelmente produtiva - saíram de sítios pré-históricos situados nas terras hoje habitadas pelo povo kuikuro, dentro da reserva indígena do Xingu, e se materializaram nas páginas da edição de 19 setembro de revista norte-americana Science, uma das publicações de maior peso entre os cientistas.Num artigo de quatro páginas, ilustrado por seis imagens de satélite, uma pouco usual equipe de autores - três da Universidade da Flórida, dois do Museu Nacional do Rio de Janeiro e dois índios kuikuro - descreve a estrutura do tipo de sociedade que havia nesse ponto da Amazônia entre 1.200 e 1.600 d.C.: um conjunto de 19 aldeias de formato circular, as maiores protegidas por fossas de até 5 metros de profundidade e muros de paliçadas, interligadas por uma extensa e larga malha de estradas de terra batida. Os pesquisadores estimam que entre 2.500 e 5.000 pessoas moravam nas maiores aldeias.O capricho e a precisão com que as vias foram concebidas e executadas impressionam. Elas eram extremamente retilíneas, com larguras entre 10 e 50 metros e extensão de 3 a 5 quilômetros. "As estradas são um trabalho de engenharia que movimentou uma quantidade enorme de terra no plano horizontal", afirma o arqueólogo Michael Heckenberger, da Universidade da Flórida, principal autor do texto na Science, um norte-americano de 41 anos que fala português fluentemente por ter vivido sete anos no Brasil, um e meio dos quais dentro do Xingu.Indícios de praças, pontes, represas e canais e do cultivo de mandioca e outras plantas também foram encontrados no sítio arqueológico, que compreende uma área de 400 quilômetros quadrados, equivalente a um terço do território da capital fluminense, não muito distante das três aldeias contemporâneas dos kuikuro. "Construir essas estruturas na floresta talvez não tenha sido mais complicado do que fazer pirâmides, mas representa uma outra forma de monumentalidade", compara Heckenberger. "Esse povo tinha uma monumentalidade horizontal", diz o antropólogo Carlos Fausto, do Museu Nacional, outro autor do estudo.



"As estradas tinham uma função mais estética do que prática." Segundo Fausto, os índios não transportavam nada de tão grande entre as aldeias que justificasse abrir caminhos de, no mínimo, 10 metros de largura, onde passam com folga dois automóveis. Os largos caminhos desbravados na floresta estariam ligados à tradição de promover rituais coletivos entre as tribos e simbolizariam a união entre as aldeias. Se essa hipótese estiver correta, entre os séculos 13 e 16, enquanto os incas, por exemplo, demonstravam o seu conhecimento construindo cidades de pedra nas terras altas dos Andes, os membros desse antigo povo do Xingu, instalados numa área plana de floresta tropical, montavam uma majestosa malha viária nas franjas da Amazônia, talvez o seu legado arquitetônico mais surpreendente.Os vestígios da "cidade" xinguana foram datados pelo método de carbono 14 e o traçado das estradas, que se baseava nos movimentos do Sol e denotava conhecimentos de astronomia, foi mapeado com o auxílio de um GPS de alta precisão. A versão do aparelho usado no Xingu, capaz de fornecer a localização precisa de um ponto geográfico com o auxílio de satélites, tinha uma margem de erro de menos de 1 metro. O instrumento foi de grande valia para os dois índios que também assinam o artigo da Science, Afukaká Kuikuro e Urissapá Tabata Kuikuro. "Eles são ótimos em achar o trajeto das estradas e sítios arqueológicos", conta Heckenberger. Muitas vezes, trechos dos caminhos abertos pelos habitantes dos antigos assentamentos encontram-se atualmente tomados pela floresta. Nesses pontos, é difícil localizar os salientes meios-fios que se formavam nas bordas das estradas e que podiam chegar a 1 metro de altura.Os autores do estudo acreditam que, em seus aspectos centrais, o assentamento pré-colonial era uma versão expandida do modo de vida dos menos de 600 kuikuro presentes hoje no Xingu, que também abrem estradas e fazem roças. Nas antigas aldeias de caráter mais residencial, as casas, provavelmente erigidas com estrutura de madeira e cobertas por sapé, como as moradias atuais, ficavam em torno da praça central. A diferença é que agora existe apenas um anel de moradias. Na época do descobrimento da América, deveria haver vários. Não há, contudo, certeza de que os índios que ali viveram há 500 anos eram realmente os ancestrais dos atuais kuikuro.A hipótese está longe de ser absurda, embora não tenha sido comprovada. "Mas, como há continuidade cultural ao longo de mais de mil anos de história dos povos do Xingu, pode-se pensar o passado por meio do presente", diz Fausto. "É bem possível que vários aspectos da cultura xinguana atual já estivessem presentes entre as populações que construíram e viveram nas antigas grandes aldeias." Entre eles, a adoção de hierarquia política, que distingue os índios entre chefes e não-chefes, e de alguns rituais intertribais, semelhantes ao o famoso Quarup, a festa em homenagem aos líderes mortos.Os índios da época pré-colonial viviam em perfeita harmonia com a floresta intocada, certo? Bem, acredita-se que eles estavam em paz com o meio ambiente. Mas a mata - é forçoso dizer - não era mais virgem. Para edificar uma sociedade de tal complexidade, com estradas ligando aldeias fortificadas e cinturões agrícolas ao seu redor, os antigos kuikuro promoviam grandes alterações na paisagem natural - assim como fazem os kuikuro de hoje. Mas os pesquisadores se apressam em dizer que não se tratava de agressões descabidas aos recursos naturais."Alguns estudos de etnobotânica mostram que o manejo indígena do meio ambiente, de forma consciente ou inconsciente, tende a produzir maior biodiversidade do que se a floresta fosse, de fato, 'virgem'", explica Fausto. Ecologistas mais radicais, românticos, podem ter visto o trabalho dos brasileiros e norte-americanos na Science como um estímulo ao desmatamento da floresta. Não se trata disso. Provocativamente intitulado "Amazônia 1492: Floresta Virgem ou Bosque Cultural?", o texto sugere que aquilo que a maioria das pessoas encara como "floresta virgem" é, na verdade, produto de uma interação milenar entre as populações indígenas e o ecossistema. E que a interferência humana no meio ambiente não degradou o solo local.



Terra preta -



Muitos quilômetros acima dos antigos assentamentos na área dos kuikuro, mais vestígios de sociedades complexas na época do descobrimento saem de uma mini-Mesopotâmia tropical, distante 30 quilômetros de Manaus, e parecem confirmar as descobertas no Alto Xingu. Numa porção de terra situada na confluência entre os rios Solimões e Negro, a equipe de Eduardo Góes Neves, do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE/USP) identificou 70 sítios arqueológicos com evidências de presença humana e realizou 71 datações por carbono 14 para determinar a sua idade aproximada. Os sítios mais antigos remontam a 8.000 anos. Num deles, por exemplo, descobriu-se uma ponta de lança feita de sílex de 7.700 anos. As áreas arqueológicas mais novas, que concentram a maior parte dos trabalhos realizados até agora, têm sítios com idade entre 2.500 e 500 anos. Cinco desses sítios mais recentesjá foram escavados e mapeados digitalmente: Açutuba, Osvaldo, Lago Grande, Hatahara eDonaStella. O material de estudo nesses locais pode até ser menos espetacular do que as antigas estradas do Alto Xingu. Mas não menos eloqüente.Nessa região próxima à periferia da capital amazonense, foram encontradas partes de esqueletos humanos dispostas diretamente no solo ou dentro de urnas, incontáveis fragmentos de cerâmicas, valas escavadas na parte de trás de alguns sítios, resquícios de paliçadas - e muita terra preta. Extremamente fértil e rico em nutrientes e repleto de pedaços de cerâmica, esse tipo de solo orgânico costuma ser interpretado como uma marca produzida por grandes e prolongados assentamentos em uma determinada região. Em alguns locais, a terra preta foi usada pelos povos pré-colombianos, junto com centenas de pedaços de cerâmica, como matéria-prima para construir montículos de 1 ou 2 metros de altura que tinham a função de tumbas. Escavando esses montículos, os pesquisadores depararam, às vezes, com urnas funerárias."Todos esses elementos indicam que a presença dos povos ameríndios foi contínua em alguns pontos da Amazônia Central", diz Neves, cujo projeto é financiado pela FAPESP. "Certos sítios foram habitados por décadas seguidas, talvez até mais de cem anos ininterruptos, por uns poucos milhares de pessoas."Como esse conjunto de achados do passado é interpretado pelo arqueólogo e serve para embasar a teoria da existência de sociedades complexas na Amazônia pré-colonial? Os montículos erigidos com terra preta e cacos de cerâmica, como os dez encontrados no sítio Hataraha, situado numa área elevada vizinha à planície aluvial do Solimões, são um indício de que haveria uma certa divisão de trabalho - e, por conseguinte, diferenças hierárquicas - entre os povos ameríndios da floresta."Alguém com comando precisava coordenar os esforços de vários homens para que se conseguisse obter esse tipo de tumba funerária", comenta Neves, que, até o mês passado, se recuperava de uma malária contraída em sua última viagem à Amazônia. A descoberta de valas nos fundos de áreas onde houve ocupações humanas denota uma preocupação dos habitantes de uma aldeia de se defender de ataques de outras povoações. Em Açutuba, o maior sítio identificado pelo projeto de Neves, com 90 hectares de área, os pesquisadores localizaram duas fossas na parte de trás de seu terreno.As dimensões dos buracos são significativas: 150 metros de extensão por 2 metros de profundidade. Perto das valas, foram achados também vestígios de paliçadas, antigos muros de madeira, o que reforça a idéia de que os índios queriam proteger a retaguarda de Açutuba. "Se havia preocupação em guarnecer os fundos de uma aldeia, é porque havia risco de guerras entre as tribos", deduz o arqueólogo da USP. O mesmo raciocínio vale para as aldeias fortificadas dos kuikuro no Alto Xingu.Presente na maioria dos sítios localizados na confluência dos rios Solimões e Negro (e também na área dos kuikuro e em outras partes da bacia amazônica), a terra preta é um dos elemento-chave para sustentar as teses de que os índios pré-coloniais já levavam um estilo de vida mais elaborado do que se pensava. Em outras palavras, é um indício de que os povos pré-colombianos (ou ao menos algumas levas deles) se fixaram em pontos da bacia amazônica, erigiram aldeias perenes de porte significativo, onde praticavam alguma forma de agricultura. Com o passar do tempo, os resíduos produzidos por essa ocupação contínua de uma área - a carcaça de animais caçados na floresta, as sobras de peixes pescados nos rios vizinhos, pedaços de plantas coletadas ou cultivadas, excrementos humanos, a madeira usada na construção de habitações - acabaram dando origem à terra preta.



Na Amazônia, a maioria dos sítios arqueológicos que apresentam essa formação geológica tem entre 2.500 e 500 anos. Bem no centro de Manaus, na praça Dom Pedro, operários que trabalhavam numa obra de revitalização do espaço público descobriram, sem querer, em agosto passado, três urnas funerárias numa camada de terra preta com idade estimada entre 1.000 e 1.200 anos. De acordo com a interpretação de Neves, a terra preta se torna mais comum há cerca de dois milênios e meio porque, nesse momento da pré-história, deve ter havido uma explosão demográfica - e de sedentarismo - entre as tribos ameríndias. Quando, cerca de cinco séculos atrás, o tamanho das populações indígenas dá sinais de declínio, em razão das armas e doenças trazidas pelo europeus, a formação desse tipo de solo começa a rarear.Até a década de 1980, não havia consenso de que a terra preta era resultado da ação do homem. Alguns estudiosos imaginavam até que esse tipo de solo negro, que, quando aflora, é usado atualmente para agricultura, pudesse ter-se formado a partir de material oriundo de vulcões andinos trazidos pelo vento ou de sedimentos provenientes de lagos. "Hoje, quase todo mundo aceita a idéia de que a terra preta é fruto da intervenção do homem na paisagem na região", assegura o arqueólogo da USP. A questão ainda em aberto é saber quanto tempo a terra preta demora para se originar. "Alguns autores acham que 1 centímetro de terra preta leva dez anos para se formar. Pessoalmente, acredito que esse processo é mais rápido e tem mais a ver com a dimensão dos assentamentos do que com o seu tempo de duração", afirma Neves. Em Açutuba, por exemplo, podem ter vivido 3 mil índios num mesmo período, segundo suas estimativas.Quando recorrem à expressão sociedade complexa, arqueólogos, antropólogos e outros estudiosos imaginam um povo que havia deixado para trás - ou relegado a um segundo plano - a vida nômade de caçador e coletor das dádivas da fauna e flora nativa. Um grupo de pessoas que tinha se fixado num pedaço de terra e desenvolvido alguma forma de agricultura. Um assentamento com algum grau de sedentarimo, dotado de aldeias para algumas centenas ou talvez milhares de pessoas, com hierarquia social e divisão do trabalho. A hipótese de que houve culturas com essas características na Amazônia pré-colonial se choca com a visão tradicional e ainda dominante da arqueologia, muito influenciada, a partir da década de 1950, pelos trabalhos de campo e artigos da norte-americana Betty Meggers.Para a veterana pesquisadora, ainda hoje ativa aos 81 anos e fiel às suas teses de décadas atrás, as condições naturais no trópico úmido - solos pobres e pouco alimento disponível ao nível do solo - eram adversas à presença humana em grande escala e somente possibilitavam a formação de pequenas aldeias, com menos de cem pessoas, que ocupavam áreas de poucos hectares. Quando a comida acabava, as pequenas aldeias eram refeitas em outro lugar, o que acontecia com freqüência. Uma crítica comum feita por Meggers os trabalhos de seus colegas que dizem ter descoberto vestígios de grandes assentamentos humanos na Amazônia é que esses pesquisadores teriam, na verdade, encontrado resquícios de pequenas aldeias que nunca foram contemporâneas. No caso da área dos kuikuro, fica difícil acreditar que os índios tenham construído uma malha viária tão grande e larga para ligar aldeias que existiram em épocas distintas.Teorias alternativas à idéia de que a Amazônia foi morada exclusiva de povos pré-coloniais sem elaborada organização política e social não são exatamente uma novidade produzida no século 21 por pesquisadores como Heckenberger, Fausto, Neves e outros. Em certa medida, cronistas europeus do século 16 que passaram pela floresta equatorial, por exemplo, fizeram referências a sociedades organizadas na bacia amazônica. O problema é que uma das mais famosas alusões desse gênero não passa de lenda, a saga das guerreiras amazonas.Nas últimas décadas, alguns estudiosos passaram a procurar evidências mais concretas que pudessem contradizer as idéias dos seguidores de Meggers. Mas a tese de que poderia ter havido sociedades complexas nos trópicos na época do descobrimento nunca se firmou devido à escassez de provas materiais que a sustentassem. A descoberta de grandes estradas e aldeias pré-colonias no Alto Xingu e de assentamentos antigos e densos nos arredores de Manaus começam a preencher essa lacuna. Os povos da floresta podiam até não ser tão sofisticados quanto seus vizinhos dos Andes ou da América Central, mas também não eram assim tão "primitivos". "Não eram um império inca ou maia. No entanto, eram complexos, com uma estrutura amazônica", resume Heckenberger.





O ProjetoComplexidade Social na Pré-história tardia da Amazônia (Alto Xingu)
CoordenadorMichael Heckenberger - Universidade da Flórida







PESQUISA EXTRAIDA NA INTEGRA DA REVISTA ON LINE DA ( FAPESP)



LINK DO SITE:http://revistapesquisa.fapesp.br/?art=2281&bd=1&pg=1&lg=