RECANTO DAS LETRAS

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

A História das Mentalidades

A HISTÓRIA DAS MENTALIDADES
ARTIGO




José D’Assunção Barros

RESUMO

Este artigo busca desenvolver um paralelo comparativo entre a História das Mentalidades, a História do Imaginário e a Psico-História, esclarecendo aspectos relacionados a estas modalidades da História e discutindo a historiografia pertinente a cada um destes campos. O artigo remete a obra recentemente publicada pelo autor deste texto, cujo principal objetivo é o de elaborar uma visão panorâmica das diversas modalidades da História nos dias de hoje.
Palavras-chave: História do Imaginário, História das Mentalidades; Imaginário Político.


ABSTRACT

This article attempts to elaborate a comparative parallel between History of Mentalities, History of Imaginary, and Psico-History, clarifying some aspects related to these fields of History and discussing the historiographer production concerning to which one of these modalities. The article refers to a recently publicized work of the author of this text, witch principal subject was to elaborate a panoramic view of the various fields in which ones the historical knowledge is divided nowadays

Key Words: History of Imaginary, History of Mentalities, political imaginary.

Imaginário e Mentalidades – uma discussão historiográfica

Dentro de uma fascinante profusão de campos intradisciplinares que tem revelado um sensível enriquecimento dos estudos históricos no que se refere ao interesse por novos objetos e por novas abordagens, a historiografia da segunda metade do século XX assistiu à significativa emergência de campos do saber historiográfico que passaram a valorizar o universo mental dos seres humanos em sociedade, os seus modos de sentir, o Imaginário por eles elaborados coletivamente. A modalidades já tradicionais na historiografia como a História Política, a História Econômica ou a História Social, os novos historiadores propuseram acrescentar a História das Mentalidades, a Psico-História, a História do Imaginário. Teremos aqui campos que com alguma freqüência se interpenetram no que concerne aos seus objetos, às suas fontes privilegiadas, às suas abordagens e aportes teóricos, às suas conexões com outros saberes e aos seus padrões de interdisciplinaridade. Contudo, cada um destes campos conserva singularidades e aspectos que nos permitem separá-los entre si como espaços intradisciplinares bem diferenciados.

O objetivo deste artigo será o de clarificar as diferenças e similitudes entre aqueles campos historiográficos que têm atentado mais enfaticamente para o estudo dos padrões mentais, dos modos de sentir e dos imaginários coletivos nos vários períodos históricos, ou, mais particularmente, a História das Mentalidades, a Psico-História e a História do Imaginário.

História das Mentalidades

Será bastante oportuno iniciar esta discussão crítica com um exame dos aspectos que têm permitido identificar esta modalidade historiográfica que se mostrou polêmica deste os seus primórdios: a História das Mentalidades. Esta nova modalidade da História, que tem precursores já na primeira metade do século XX mas que rigorosamente começa a se delinear como um novo espaço de ação para os historiadores na segunda metade do século, propunha-se enfocar a dimensão da sociedade relacionada ao mundo mental e aos modos de sentir, ficando a partir daí sob a rubrica de uma designação que tem dado margem a grandes debates que não poderão ser todos pormenorizados aqui[3].

Terá certamente contribuído para esta polêmica o fato de que os historiadores das mentalidades foram os primeiros a se interessarem por determinados temas não convencionais, desbravando certos domínios da História que os historiadores ainda não haviam pensado em investigar. Assim, Robert Mandrou propôs-se a estudar a longa persistência de certos modos de sentir que motivaram a prática da feitiçaria e sua repressão no livro Magistrados e feiticeiros na França do século XVII (1979); Jean Delumeau impôs a si a tarefa de examinar um complexo de medos de longa duração que haviam estruturado o modo de sentir do homem europeu durante muito tempo, e cuja lenta superação permitiu precisamente a passagem para o mundo moderno (1989), Philippe Ariès (1981) e Michel Vovelle (1982) empenharam-se dedicadamente em analisar historicamente os sentimentos do homem diante da Morte.

De certo modo, por força dos novos e imprevisíveis objetos que traziam à tona com bastante audácia – e em virtude de sua tendência a dedicarem anos de um exaustivo trabalho intelectual a temas que deles fizeram verdadeiros especialistas em objetos historiográficos até então considerados insólitos – os historiadores das mentalidades vieram a constituir uma espécie de vanguarda da tendência da Nova História da segunda metade do século XX em se tornar uma espécie de “história em migalhas”, para utilizar aqui a famosa expressão que deu um título ao impactante livro de François Dosse (1994)[4]. sobre a passagem dos Annales para a Nova História Foram eles que primeiro exploraram certos temas que – a princípio recebidos pelos demais historiadores como estranhos ou exóticos – logo encontrariam um curioso lugar editorial entre uma multidão de outros campos temáticos que posteriormente marcariam, através de uma miríade de novas especialidades relativas aos ‘domínios’ históricos, a tendência à fragmentação que parecia deixar definitivamente para trás as antigas ambições braudelianas de realizar uma ‘história total’.

Devido à sua exploração ousada de certos temas até então incomuns, a História das Mentalidades produziu no seu nascedouro uma forte estranheza que logo despertaria acirradas polêmicas. Mas é muito importante ter em vista que a História das Mentalidades não pode ser definida essencialmente com base nestes novos domínios historiográficos que ela passou a privilegiar em um primeiro momento. Mesmo porque, posteriormente, estes mesmos domínios também foram retomados por outros campos da história que pouco ou nada têm a ver com a História das Mentalidades.

Rigorosamente, qualquer tema pode ser trabalhado a partir dos vários enfoques que classificaremos aqui como relacionados às ‘dimensões’ sociais (a Política, a Economia, a Cultura, as Mentalidades, o Imaginário, e assim por diante)[5]. Assim, uma História da Morte pode ser trabalhada pela História Demográfica, pela História Política, pela História da Cultura Material, e não apenas pela História das Mentalidades. Em contrapartida, temas já tradicionais como o do “nacionalismo” ou o da “religião” podem ser igualmente examinados da perspectiva de uma História das Mentalidades. Não são portanto os domínios privilegiados pelos historiadores das mentalidades que definem o tipo de história que fazem, mas sim a dimensão da vida social para a qual os seus olhares se dirigem: o universo mental, os modos de sentir, o âmbito mais espontâneo das representações coletivas e, para alguns, o inconsciente coletivo.

A verdadeira polêmica que envolve a história das mentalidades é teórica e metodológica. Apenas para registrar alguns problemas pertinentes a este campo historiográfico que se consolida a partir da década de 1960, mencionaremos aqui as questões fundamentais que devem ser refletidas pelo historiador que ambiciona trilhar estes caminhos de investigação. Existirá efetivamente uma mentalidade coletiva? Será possível identificar uma base comum presente nos “modos de pensar e de sentir” dos homens de determinada sociedade – algo que una “César e o último soldado de suas legiões, São Luís e o camponês que cultivava as suas terras, Cristóvão Colombo e o marinheiro de suas caravelas”? Estas imagens, extremamente oportunas, foram celebrizadas por Lucien Febvre.

Abraçando a perspectiva teórica de que existem de fato mentalidades coletivas, o historiador deve ampliar a sua concepção documental. Conforme assinala François Furet (1991: p.93), se o historiador das mentalidades pretende alcançar níveis médios de comportamento, não pode se satisfazer mais apenas com a literatura tradicional do testemunho histórico, que é inevitavelmente subjetiva, não representativa, ambígua. Assim, como veremos adiante, ocorreu um casamento feliz entre a História das Mentalidades (um campo histórico que se refere a uma ‘dimensão’) e a História Serial (um campo histórico que se refere a uma ‘abordagem’). A revalidação dos estudos de natureza qualitativa, ao lado da abordagem serial, não esteve contudo alheia a outros historiadores das mentalidades – como no caso de Michel Vovelle, historiador marxista das mentalidades que defende em um artigo importante o uso das duas abordagens como igualmente válidos para captar a dimensão mental de uma sociedade (1987: p.31).

Para resumir três ordens de tratamentos metodológicos que os historiadores das mentalidades têm empregado na sua ânsia de captar os modos coletivos de pensar e de sentir, poderemos registrar precisamente (1) a abordagem serial, (2) a eleição de um recorte privilegiado que funcione como lugar de projeção das atitudes coletivas (uma aldeia, uma prática cultural, uma vida), ou finalmente (3) uma abordagem extensiva de fontes de naturezas diversas. Neste último caso enquadra-se a obra O Homem diante da Morte, de Philippe Ariès. Nesta ambiciosa obra, lança-se mão dos mais diversos tipos de fontes – desde os escritos de todos os tipos (obras literárias, textos hagiográficos, poemas, canções, crônicas oficiais, testemunhos anônimos) até as fontes iconográficas e os objetos da cultura material. Vovelle denomina a esta utilização de um universo de fontes tão heterogêneo, percorrido mais ou menos livremente, de técnica “impressionista” (1987: 51).

Ele mesmo já utiliza a segunda ordem de procedimentos a que atrás nos referíamos: de um modo geral, prefere a abordagem serial. Em sua tese sobre a Piedade Barroca e Descristianização (1978), Vovelle examinou com precisão e método milhares de testamentos provençais – sempre de forma maciça e procurando enxergar serialmente padrões e deslocamentos de padrões que denunciassem as variações das atitudes diante da morte na longa duração por ele escolhida. Quando examina fontes iconográficas, afasta-se da abordagem qualitativa livre para avaliar topicamente a recorrência e a ruptura de certos modos de representar, às vezes medindo espaços no interior da representação iconográfica e quantificando elementos figurativos. Se vai às fontes da cultura material, à arquitetura funerária por exemplo, faz medições das distâncias que separam túmulos e altares. Sua abordagem é portanto sistemática, cuidadosamente preocupada com a homogeneidade das fontes e com o seu lugar preciso dentro da série.

A derradeira ordem de tratamentos metodológicos corresponde à já mencionada eleição de um recorte privilegiado que funcione como lugar de projeção das atitudes coletivas ou de padrões de sensibilidade. Pode ser um microcosmos localizado ou uma vida, desde que o autor os considere significativos para a percepção de uma mentalidade coletiva mais ampla.

Lucien Febvre, precursor distante dos estudos de mentalidade, havia tentado precisamente esta via. Em sua famosa obra sobre Rabelais, o historiador francês se propõe – a partir da investigação de um único indivíduo – identificar as coordenadas de toda uma era (FEBVRE, 1962). A abordagem é criticada por Carlo Ginzburg – historiador mais habitualmente classificado na interconexão de uma História Cultural (dimensão) com uma Micro-História (abordagem) [6]. Ao contrário de Febvre, Ginzburg opta por instrumentalizar o conceito de “mentalidade de classe” em sua obra O Queijo e os Vermes (1989: p.34). Neste último caso – onde toma como documentação principal os “registros inquisitoriais” do processo de um moleiro italiano perseguido pela inquisição no século XVI – Ginzburg mantém-se atento à questão da ‘intertextualidade’, isto é, ao diálogo que o discurso do moleiro Menocchio estabelece implicitamente com outros textos e discursos.

Desta forma, embora ambos os historiadores partam de um estudo de caso individual, a abordagem tornou-se distinta. Ressalte-se, no tratamento historiográfico levado adiante por Ginzburg, a já mencionada preocupação em identificar os vários registros dialógicos presentes em uma mesma fonte – preocupação que se coaduna muito intimamente com um dos setores da chamada nova História Cultural. Assim, para além do discurso externo do próprio Menocchio, visível na superfície de suas fontes, o historiador italiano toma por objeto a multiplicidade de discursos que o constituem; e, além disso, evita a pretensão de reconstituir uma “mentalidade de época”. Sua metodologia funda-se em uma análise dialógica e intensiva da documentação. Seu enfoque, como se disse, é mais propriamente cultural.

Uma nova história cultural, aliás, vem fortalecendo cada vez mais uma alternativa para o tratamento de certos temas que até então foram campos privilegiados pelos historiadores das mentalidades. Ainda assim, é preciso reconhecer que a História das Mentalidades, sobretudo através dos historiadores franceses da Novelle Histoire, proporcionou uma significativa abertura aos novos modos de fazer a história, inclusive deixando sua margem de influências na historiografia brasileira da década de 1980. É verdade que, para o caso da maioria dos nossos historiadores, ela raramente foi uma influência única e linear, aparecendo habitualmente combinada a outras influências e entrelaçada com outras sub-especialidades da História.

Apenas como um exemplo, a historiadora Laura de Melo e Souza – autora de obras que vão de Os Desclassificados do Ouro (1993) até Inferno Atlântico (1982) – reconhece em seu trabalho uma influência importante advinda de historiadores das mentalidades como Geremek e Mandrou[7], mas acrescenta que suas influências ou inserções mais importantes referem-se à Etno-História e à História da Cultura, neste último caso a partir das obras de Ginzburg (MORAES e REGO, 2001: p.377). Já João José Reis – autor do já clássico A Morte é uma Festa (1991) – reconhece a importância para o amadurecimento de seu trabalho da leitura dos historiadores franceses das mentalidades que estudaram as atitudes diante da morte (Ariés, Vovelle), mas situa sua principal coordenada em uma História Social da Cultura inspirada no historiador marxista Edward Thompson (MORAES e REGO, 2001: p.329-330).

História do Imaginário

Os novos objetos que audaciosamente os historiadores das últimas décadas do século XX passariam a explorar, tal como se disse, não se tornaram de modo algum monopólios da historiografia das mentalidades. Ainda explorando os caminhos da cultura, e também o universo mental das sociedades, poderemos delimitar agora as bases de um campo que pode ser definido como uma História do Imaginário – investimento historiográfico que começa por abrir mais uma alternativa à investigação daqueles objetos historiográficos que até então haviam sido seara praticamente exclusiva da História das Mentalidades.

A História do Imaginário estuda essencialmente as imagens produzidas por uma sociedade, mas não apenas as imagens visuais, como também as imagens verbais e, em última instância, as imagens mentais. O Imaginário será aqui visto como uma realidade tão presente quanto aquilo que poderíamos chamar de “vida concreta”. Esta perspectiva sustenta-se na idéia de que o imaginário é também reestruturante em relação à sociedade que o produz. Assim, basta lembrar como um exemplo entre outros que, na Idade Média, muitos se engajaram nas Cruzadas menos por razões econômicas ou políticas (embora estas sejam sempre evidentes) do que em virtude de um imaginário cristão e cavaleiresco. O imaginário mostra-se desta forma uma dimensão tão significativa das sociedades humanas como aquilo que corriqueiramente é encarado como a realidade efetiva.

A elaboração de um conceito (ou de uma noção) de Imaginário para as ciências humanas deve muito a Cornelius Castoriadis, cuja obra de referência é A Instituição Imaginária da Sociedade (1982), e a historiadores como Jacques Le Goff e Georges Duby. Não devem ser desprezadas as contribuições antropológicas, como a de Gilbert Durand em As Estruturas Antropológicas do Imaginário (1989), embora o historiador deva estar atento a um tratamento por vezes a-histórico que transparece neste livro. Todavia, como recolha de um repertório milenar de imagens, devidamente interconectadas, esta obra é imprescindível.

A noção de Imaginário é polêmica. Por um lado ela conserva interfaces com a noção de “representação”, e em algumas situações os campos originados por estes dois conceitos se invadem reciprocamente. Jacques Le Goff destacava que “o imaginário pertence ao campo da representação, mas ocupa nele a parte da tradução não reprodutora, não simplesmente transposta em imagem do espírito mas criadora, poética no sentido etimológico da palavra” (1980: 12). Para o historiador francês, como aliás para Castoriadis em sua obra pioneira sobre A Invenção Imaginária da Sociedade, o Imaginário não pode ser examinado como algo estático. De certo modo, marca-se aqui uma distância em relação à noção de “mentalidade”, que evoca uma idéia maior de imobilidade ou de permanência em uma duração mais longa. Mas a isto voltaremos oportunamente.

Por ora, consideraremos o Imaginário como um sistema ou universo complexo e interativo que abrange a produção e circulação de imagens visuais, mentais e verbais, incorporando sistemas simbólicos diversificados e atuando na construção de representações diversas. De acordo com esta definição, existe uma interface possível do Imaginário não apenas com o campo das “representações”, mas também com o âmbito dos “símbolos”. Neste sentido, deveremos lembrar que é possível se falar em “simbólico” apenas quando um objeto, uma imagem ou uma representação são remetidos a uma dada realidade, idéia ou sistema de valores que se quer tornar presente (a espada como símbolo da justiça). Uma imagem, portanto, pode se ver revestida de significado simbólico, conforme veremos adiante com o exame de algumas imagens apropriadas politicamente.

A noção de Imaginário, de qualquer modo, é complexa e aberta a sentidos diferenciados, o que não impede que tenha gerado uma dimensão historiográfica importante. Para encontrar uma obra precursora no campo da historiografia, devemos ir ao clássico de Johannes Huizinga, escrito em princípios do século XX e traduzido para o português com o título O Declínio da Idade Média (1978). Nesta obra, o historiador holandês circula livremente entre as imagens visuais e verbais perceptíveis através da produção cultural das sociedades franco-flamengas de fins da Idade Média, antecipando em décadas um campo histórico que só passaria a receber uma atenção mais sistemática dos historiadores a partir da década de 1970. Suas fontes são constituídas tanto de textos literários como de obras iconográficas. Adicionalmente, Huizinga também toca na questão de determinados modos de sentir que seriam comuns a todos os homens medievais, o que o coloca também como um precursor da História das Mentalidades.

Tal como se disse, os primeiros domínios históricos a serem percorridos pela moderna História do Imaginário coincidiram de certa forma com aqueles que começaram a ser desbravados pelos historiadores das mentalidades na década de 1960. Ginzburg, por exemplo, ocupou-se de recuperar um imaginário das práticas de feitiçaria em Os Andarilhos do Bem (1991). Todavia, embora existam alguns objetos em comum, a História do Imaginário guarda alguma distância em relação à História das Mentalidades.

Esta última está muito associada à idéia de que existe em qualquer sociedade algo como uma “mentalidade coletiva”, que para alguns seria uma espécie de estrutura mental que só se transforma muito lentamente, às vezes dando origem a permanências que se incorporam aos hábitos mentais de todos os que participam da formação social (apesar de transformações que podem estar se operando rapidamente nos planos econômico e político).

A História do Imaginário não se ocupa propriamente destas longas durações nos modos de pensar e de sentir, mas sim da articulação das imagens visuais, verbais e mentais com a própria vida que flui em uma determinada sociedade. Foi o que Jacques Le Goff pretendeu fazer em sua obra O Nascimento do Purgatório (1990), em que busca investigar a mútua interação entre o imaginário religioso medieval e a sociedade que o produziu.

Por outro lado, nota-se que em geral os historiadores das mentalidades estão sempre no encalço de algo que, grosso modo, é bem mais abstrato do que as imagens bem definidas investigadas pelos historiadores do Imaginário. A História das Mentalidades busca captar modos coletivos de sentir (a história de um sentimento como o “medo”), padrões de comportamento e atitudes recorrentes (os complexos mentais e emocionais que estão por trás das crenças e práticas da feitiçaria, as atitudes do homem diante da morte). Já a História do Imaginário volta-se para objetos mais definidos: um determinado padrão de representações, um repertório de símbolos e imagens com a sua correspondente interação na vida social e política, o papel político ou social de certas cerimônias ou rituais, a recorrência de determinadas temáticas na literatura, a incorporação de hierarquias e interditos sociais nos modos de vestir, a teatralização do poder.

Uma pequena comparação de casos poderá contribuir para clarificar a questão. Na História do Medo no Ocidente de Jean Delumeau (1989), procura-se captar um complexo de medos que faziam parte da constituição da mentalidade coletiva do homem ocidental, considerando-se um período de longa duração que tem seus primórdios na Idade Média e que o autor examina até o século XVIII.

Habituados a um mundo rural fechado em redes senhoriais e controles privados, que só conheceria uma re-intensificação do comércio a partir do século XII e que, mesmo neste processo de reurbanização, será um mundo de cidades muradas e de castelos fortificados; ou acostumados desde a mais tenra infância a partilhar a vida diária entre as permanências pagãs e um sobrenatural religioso cristão; assaltados outras vezes pela peste e pelas invasões de povos que lhes pareciam bárbaros ... os homens medievais desenvolveram uma série de medos que eram partilhados pela totalidade social. Apesar das transformações políticas e sociais de a partir do século XIII, os homens da Baixa Idade Média e do princípio do período moderno haviam herdado permanências seculares, que só poderiam ser alteradas em ritmos muito lentos ou então sob estímulo de alguns dos acontecimentos traumáticos do princípio dos tempos modernos.

Para resumir o complexo de medos ocidentais rastreados por Delumeau, poderemos mencionar o medo do mar, o medo do desconhecido, o medo da noite, o medo das florestas não desbravadas que constituíram verdadeiras fronteiras internas ainda nos tempos feudais, o medo dos leprosos e da Peste Negra, e sobretudo o medo do “outro” – que podia se voltar contra os judeus, contra os muçulmanos, contra as bruxas, ou contra os simples forasteiros. Medo, por fim, do Diabo – a quem os vários “outros” eram constantemente assimilados.

Estes medos só a custo foram sendo vencidos quando o homem ocidental começou e continuou a desbravar as suas florestas internas, quando se lançou às grandes viagens oceânicas, ou à aventura do intercâmbio com povos os mais diversos, ou mesmo quando começou a decifrar racionalmente uma natureza que até então lhe parecera enigmática e até assustadora. Os desbravadores que se lançavam a outras terras como Marco Polo, como os alquimistas que queriam decifrar o mundo natural e sobrenatural, como os novos comerciantes de longo curso, como os cruzados ou como os missionários ... eram pessoas que enfrentavam e lutavam contra estes vários medos coletivos. A caminhada para a modernidade aparece assim uma trajetória de superação destes medos seculares, talvez em direção a novos medos a serem inventados de acordo com as circunstâncias histórico-sociais. Estas longas permanências no âmbito dos modos de sentir – produtoras de medos coletivos que em algumas ocasiões eram manipulados pelos donos do poder – são tratadas por Jean Delumeau como mentalidades.

Em que objetos está interessado o historiador neste caso? Busca compreender os medos coletivos que aparecem aqui como ‘modos de sentir’ a serem partilhados por todos, e que além de ocuparem uma longa duração estendem-se por todos os espaços – não uma pequena aldeia, ou sequer a França, mas o Ocidente Cristão. Mais ainda, estes modos de sentir atravessam as classes, passam a se insinuar na análise do historiador como elementos constituintes da estrutura mental dos homens de toda uma época.

Um historiador do Imaginário estaria menos interessado nestes modos coletivos de sentir do que nas imagens socialmente produzidas, mesmo que em alguns casos estas imagens sejam produzidas por padrões coletivos de sentimento e de sensibilidade.

Quando um autor como Claude Kappler escreve a sua obra sobre Monstros, demônios e encantamentos no fim da Idade Média (1994) – portanto abordando um recorte análogo e objetos muito próximos ao de Jean Delumeau – está muito particularmente interessado nas imagens e nos seus usos, no inventário de fenômenos prodigiosos que assaltam a imaginação dos homens medievais, na tipologia de monstros que se espalha pelos seus bestiários e que têm algo a dizer sobre o contexto social em que foram produzidas, nas visões cosmográficas a partir das quais eram estabelecidas representações da Terra e do Universo, trazendo o paraíso para um ponto qualquer no Oriente ou no topo do mundo.

É verdade que Kappler trabalha também com a perspectiva de uma longa permanência medieval, e por isto dialoga em um de seus capítulos com a história das mentalidades. Mas isto é circunstancial ao seu objeto – já que, conforme veremos, as imagens, as cosmovisões e os símbolos podem ser produzidas também por circunstâncias políticas, por necessidades sociais e até locais, por artimanhas da poesia e da literatura, por arquitetura política pensada ou intuída, ou podem mesmo ser ocasionadas por grandes eventos que caem como raios na vida das sociedades. Durante o período Nazista na Alemanha do século XX, por exemplo, um riquíssimo Imaginário foi construído em umas poucas décadas em torno da suástica, da imagem do super-homem de raça pura, da simbologia do Reich e do papel do Führer no centro ou no topo deste imaginário político, Um Imaginário que aflora repentinamente, mesmo que recolhendo materiais seculares como as idéias pan-germanistas e as hostilizações anti-semitas.

Mas deixemos por ora os demônios do século XX e voltemos aos de Claude Kappler – ao seu imaginário de monstros, demônios e encantamentos da Idade Média. Que este historiador está embriagado de imagens nas suas motivações historiográficas fica bem claro nas primeiras frases de seu trabalho. Ele nos conta que a idéia de seu livro germinou da contemplação das pinturas de Jerônimo Bosch – pintor renascentista que muitas vezes contrasta com seus contemporâneos pela profusão em seus quadros de um imaginário iconográfico riquíssimo onde abundam os monstros, os seres fantásticos, os prodígios, as referências a um sobrenatural mágico. Enquanto Delumeau está fascinado pela persistência de um modo de sentir, Kappler está fascinado pelos modos de imaginar, de representar, de viver entre imagens visuais e verbais construídas pelos homens medievais.

Alguns talvez considerem a obra de Kappler sobre os monstros medievais um tanto descritiva, como se o seu objetivo principal fosse apenas o de inventariar um vasto universo de imagens que hoje causam estranhamento ou curiosidade. Descrever a imagem pela imagem é uma das tentações da História do Imaginário. Mas convenhamos que uma História Descritiva pode ser elaborada em qualquer uma das dimensões que estamos estudando: um historiador econômico pode se limitar a descrever os ciclos e as flutuações de preços em um determinado período, e um historiador demográfico pode reduzir o seu trabalho à apresentação de curvas demográficas e de dados sobre uma população de determinado local e época. A História Descritiva (como a História Factual, que é a sua contrapartida entre os historiadores que se comprazem em narrar uma seqüência de eventos) pode ser sempre confrontada com uma História-Problema. Problematizações interessantes podem ser elaboradas em todas as dimensões e domínios historiográficos, com os mais diversificados métodos e abordagens.

O historiador do Imaginário começa a fazer uma história problematizada quando relaciona as imagens, os símbolos, os mitos, as visões de mundo a questões sociais e políticas de maior interesse – quando trabalha os elementos do Imaginário não como um fim em si mesmos, mas como elementos para a compreensão da vida social, econômica, política, cultural e religiosa. O imaginário deve fornecer materiais para o estabelecimento de inter-conexões diversas. Estão aí as obras de Jacques Le Goff mergulhando nas estruturas sociais através das imagens do Purgatório, ou de Georges Duby compreendendo a visão tripartida da sociedade através do Imaginário do Feudalismo.

Este contraste entre a busca de modos de sentir mais abstratos (medo, pavor da morte, afetos) e a intenção de decifrar a profusão de imagens visuais, verbais e mentais pode esclarecer algumas das fronteiras e pontos de contato entre a História das Mentalidades e a História do Imaginário. Com base no que até aqui discutimos (pois a questão não se resume a isto), postulamos que a famosa obra em que Marc Bloch estuda Os Reis Taumaturgos (1993) é muito mais uma precursora da História do Imaginário do que de uma História das Mentalidades.

O que Bloch está examinando neste caso é a persistência de um determinado imaginário régio, de uma determinada crença popular em um aspecto muito específico e delineado que seria a capacidade dos reis franceses e ingleses de duas dinastias medievais curarem com um simples toque as “escrófulas” (sintomas visíveis de doenças pouco conhecidas na época). Marc Bloch decifra precisamente a imagem do “rei taumaturgo” e a sua apropriação política, investigando rituais e simbologias que com ela estariam relacionados. Não é portanto um modo genérico de sentir o que ele busca rastrear, mas a história de uma crença muito bem delineada e atrelada ao universo político e social de sua época, com base em um imaginário que tem uma história e que foi se entranhando na maneira medieval de conceber uma realeza que dialoga com a sacralidade.

De um modo geral, a diferença entre a História das Mentalidades e a História do Imaginário acaba por produzir uma tendência a abordagens distintas. Não raro, chega-se às Mentalidades de maneira indireta, freqüentemente através de indícios, de detalhes que são reveladores de atitudes coletivas e de modos de sentir comuns a toda uma sociedade. Já o Imaginário pode ser muitas vezes apreendido por uma análise mais direta do discurso, seja este um discurso verbal ou visual, empregando para tal desde análises topológicas até recursos semióticos (e também métodos iconográficos e iconológicos para o caso das imagens visuais).

A independência de uma História do Imaginário em relação a uma História das Mentalidades propriamente dita não impede que alguns historiadores tenham atuado na articulação entre estas duas dimensões, como foi o caso do historiador das mentalidades Michel Vovelle, que em um mesmo trabalho historiográfico buscou perceber tanto os padrões de sensibilidade do homem diante da morte como as formas simbólicas que os acompanham.

Vale a pena registrar esta interconexão entre mentalidades e imaginário percorrida com sucesso pelo historiador francês. O ponto de partida é uma hipótese que se sustenta no conceito de mentalidade como estrutura de longa duração: teria ocorrido no ocidente europeu do século XVIII (entre 1730 e 1770) uma mudança radical na sensibilidade coletiva diante da morte, e na verdade na sensibilidade religiosa em sentido mais amplo, uma vez que a partir deste período assiste-se ao que o historiador francês chama de uma “descristianização” (VOVELLE, 1978).

Partindo de uma História das Mentalidades calcada em uma hipótese que encara a sensibilidade religiosa e mortuária do homem ocidental como uma estrutura de longa duração que se desgasta mais aceleradamente a partir do século XVIII, Vovelle chega a uma História do Imaginário tanto pelo seu enfoque nas imagens, símbolos e representações, como pelo tipo de fontes iconográficas que postula serem indispensáveis para a percepção de certos aspectos das representações coletivas. Desta forma, abordando tanto a iconografia dos cemitérios (imagens visuais) como as comunicações fúnebres (imagens produzidas no âmbito da escrita), Michel Vovelle revela o caminho percorrido:

“Todo um trabalho de decifração se impõe a partir de indícios frágeis. Escrutinando os ex-votos, o pesquisador medirá pacientemente a superfície, respectivamente do espaço celeste de aparição e da cena terrestre; analisará, também, o gestual e o jogo dos olhares pelo qual se estabelece a ligação entre os dois universos. Analisando as representações do purgatório em sua evolução, sublinhará as mutações características de um panteão de intercessores que, paulatinamente, vai se despovoando do século XVII ao século XVIII ” (VOVELLE, 1987: p.42)

Vovelle revela-se um verdadeiro mestre em suas investigações sobre a religiosidade e a morte – um mestre capaz de perceber o imaginário seja nos objetos de cultura material, seja nas fontes iconográficas, seja em documentação escrita como os testamentos. Examina altares e retábulos, mede o tamanho de velas! Avalia as imagens verbais registradas nos epitáfios, seja para perceber as fórmulas estereotipadas que indicam permanências, seja para surpreender aquele detalhe revelador, aquela lenta emergência de novas imagens verbais a denunciar simultaneamente a presença de um novo imaginário e de uma nova sensibilidade diante da morte.

É preciso maestria para elaborar historiograficamente estas conversões da informação visual em imagem mental, da informação escrita em imagem visual, ou para fazer a passagem do discurso contido nas fontes de cultura material para o discurso verbal, e vice-versa. É a mesma maestria que nos revela Le Roy Ladurie, historiador que circula com a mesma desenvoltura entre uma história da cultura material, uma história das mentalidades e uma história do imaginário, conhecendo os segredos da conversão de um destes campos no outro. Para justificar estes elogios, será bastante reproduzir um pequeno trecho de suas fontes – documentos inquisitoriais que registram os depoimentos de réus acusados de pertencerem à heresia cátara – e os subseqüentes comentários do historiador, hábil em perceber em um pequeno extrato textual todo um universo que abrange desde traços da cultura material de uma pequena comunidade até os traços de suas “utensilhagem mental”, para utilizar uma expressão de Lucien Febvre que Ladurie encampa conceitualmente:

[TEXTO DA FONTE]: “Um dia [conta Guillemette Clergue, cujo marido é violento] eu precisava de pedir emprestados alguns pentes para pentear o canhâmo e fui, para esse efeito, a casa de meu pai. E, quando aí cheguei, encontrei o meu irmão que tirava o esterco de casa. E perguntei ao meu irmão:

— Onde é que está a senhora minha mãe?

— E que lhe quereis? replicou ele.

— Quero alguns pentes, disse eu.

— A nossa mãe não está aqui, concluiu o meu irmão. Foi à água. Só voltará daqui a um bom bocado.

Não acreditei no meu irmão e tentei entrar em casa. Então, o meu irmão pôs o braço defronte da porta e impediu-me de entrar”

[COMENTÁRIO DO HISTORIADOR]: “Texto notável! A porta é estreita; foi barrada por um simples braço de homem: a porta cheira a esterco; Alazais Rives, a mãe, é aguadeira da domus do seu homem, como todas as outras. Isto não impede que esta mamã muito vulgar tenha o direito ao título de Senhora (“minha senhora”!) por parte de sua filha Guillemette Clergue. Esta família é, por outro lado, um ninho de escorpiões; os laços são no entanto ritualizados. O irmão trata por vós a irmã, o que não o impede de ser brutal para com ela” (LADURIE, 1983: p.252}

A partir de um registro verbal, aparentemente tão despretensioso, Ladurie traz à tona a materialidade das habitações, os seus cheiros, a labuta diária das mulheres oprimidas pelos maridos, a contradição entre a simplicidade destas vidas e a formalidade respeitosa com que se tratam. Enfim, recupera-se em um instantâneo notável o material e o mental que se entrelaçam em torno das relações sociais rigidamente hierarquizadas e ritualizadas. As imagens irrompem através da verbalidade e chegam a exalar cheiros e concretudes materiais prontamente percebidas pelo historiador.

Voltemos, contudo, aos esforços de explicitar os limites existentes entre o enfoque da História das Mentalidades e o enfoque da História do Imaginário. Ressalvados os significativos e eloqüentes exemplos de Vovelle e Ladurie, o encontro entre História do Imaginário e História das Mentalidades não é em todo o caso obrigatório, sendo pertinente considerá-los como dois campos específicos. Se um circuito do imaginário social pode se formar lentamente, a partir de longas permanências e de uma dimensão mais diretamente derivada dos modos automáticos de pensar e de sentir – ou a partir das mentalidades, como diriam os historiadores que enfocam esta dimensão social – pode se dar também que um circuito imaginário seja produzido por necessidades ou por motivações políticas. Neste caso, veremos que combinações da História do Imaginário com outros campos são perfeitamente possíveis (por exemplo, entre uma História do Imaginário e uma História Política).

Da mesma forma que existe um “imaginário religioso”, cada sociedade desenvolve também o seu “imaginário político”, como aquele que Ernst Kantorowicz estudou em Os Dois Corpos do Rei (1998). A idéia presente na Inglaterra e na França do Antigo Regime de que o “rei não morre jamais”, ou de que a própria sociedade constitui um “segundo corpo do rei”, pode estar, segundo o historiador polonês, interconectada com um imaginário cristão ao mesmo tempo em que a determinadas motivações políticas, percebendo-se aqui uma rede de múltiplas interações a serem decifradas pelo historiador.

Em muitos casos, um circuito de elementos do Imaginário Social pode ser produzido ou apropriado por circunstâncias políticas ou, tal como já mencionamos, mesmo por uma arquitetura do poder. Também não são raros os casos em que o Imaginário encontra um leito em determinadas condições sociais, ou que se adapte a certas motivações políticas. Na Espanha Medieval do século XIII, os sábios e juristas do rei Afonso X elaboraram a imagem de que “o rei é a cabeça, o coração e a alma do reino”. Este imaginário tem muito a ver com a maneira medieval de conceber a sociedade como um organismo (que teria no rei a sua cabeça), mas tem a ver também com uma determinada maneira de governar. Porque não só a cabeça, órgão que comanda de cima, ou só o coração, órgão que rege a vida de dentro, ou só a alma, que está em toda a parte? O que está por trás desta hábil estratégia de unir estas três imagens em uma única metáfora?. Um estudo inserido na História do Imaginário deve elaborar perguntas desta ordem.

Cada sociedade, ou cada sistema político pode produzir um imaginário do governante que lhe seja mais apropriado. À estruturação do poder absolutista francês no século XVII, por exemplo, adaptou-se com muita eficácia a imagem do Rei-Sol difundida por Luís XIV. Outrossim, a história nos oferece inúmeros imaginários régios; o rei taumaturgo, o rei-sábio, o rei santo, apenas para citar alguns.

Os horizontes abertos por uma busca da compreensão do imaginário político são na verdade inúmeros. Os modos como o poder é representado – por exemplo em termos de “centro” e de “periferia” – ou como a estratificação social materializa-se em imagens como a de um espectro de alturas em que as classes sociais mais favorecidas são chamadas de “classes altas” ... eis aqui algumas imagens sociais e políticas que podem passar a fazer parte da vida de uma sociedade. Georges Duby, por exemplo, buscou recuperar precisamente o imaginário que está por trás dos padrões de organização da sociedade feudal em As Três Ordens ou o Imaginário do Feudalismo (1971).

Mas a História do Imaginário também pode seguir por outros caminhos. Existe o estudo mais direto das imagens visuais, perceptíveis por exemplo nas iconografias, ou das imagens verbais empregadas na literatura – não propriamente para perceber um fundo mental que as sustenta, como no caso dos já mencionados exemplos de Michel Vovelle, mas para estudar estas imagens visuais e literárias em si mesmas. Neste ponto, a História do Imaginário partilha seus objetos com uma “história das imagens” propriamente dita, ou com uma “história das representações”, que são na verdade ‘domínios da história’ (ou seja, campos temáticos à disposição do historiador). São domínios que, naturalmente, também podem ser partilhados por uma História Cultural. Vale ressaltar que, neste caso, o estudo das imagens abre-se a metodologias próprias, que vão desde os métodos da iconografia temática iniciada cedo por autores como Emile Mâle, até o célebre “método iconológico” de Erwin Panófsky (1991), passando pelas abordagens semiológicas da imagem.

O importante no estudo de imagens como fontes históricas, é buscar metodologias próprias com a atenção de que existe uma diferença clara entre o discurso visual e o discurso escrito. Deve-se evitar, naturalmente, aquela tentação ou até mesmo inocência de se utilizar a fonte iconográfica como mera ilustração que confirma o que o historiador já percebeu através do discurso escrito de outra fonte que está sendo trabalhada paralelamente. A imagem visual, é o que queremos ressaltar, tem ela mesmo algo a ser dito. É preciso fazê-la falar com as perguntas certas, ou, para utilizar uma metáfora de Vovelle, arrancar da imagem certas “confissões involuntárias” (1987: p.70).

Para sintetizar o paralelo até aqui considerado, será possível delimitar os espaços historiográficos que correspondem a estes campos aparentemente tão próximos da historiografia. Apesar de se constituírem a partir de dimensões que guardam entre si alguma proximidade – o Imaginário e o universo mental dos homens inseridos em sua vida coletiva – o que a História das Mentalidades traz para primeiro plano são modos de pensar e de sentir que em princípio corresponderiam a processos de longa duração, e que podem se expressar ou não em imagens mentais, verbais ou visuais. A História do Imaginário, por seu turno, traz a primeiro plano certos padrões de representação, certas potências da imaginação que se concretizam em imagens visuais, verbais ou mentais, mas que não necessariamente se formam em processos de longa duração (embora isto possa acontecer). O Imaginário, conforme se salientou, pode ser objeto de uma arquitetura política, ser interferido por ela – pode ser gerado rapidamente sob determinadas circunstâncias; pode ainda ser produzido a partir da representação artística e gerar suas próprias conexões. O Imaginário nem sempre surgirá como uma dimensão coletiva (embora isto possa ocorrer), o que já se dá necessariamente com aquilo que foi chamado de Mentalidades pelos historiadores que acreditam na possibilidade de identificar um substrato comum entre os homens de uma mesma época, ou pelo menos de um mesmo setor da sociedade.

Psico-História

Resta discutir outra modalidade historiográfica que guarda alguma sintonia com a História do Imaginário e com a História das Mentalidades. A modalidade da Psico-História, também surgida no século XX e ainda lutando por um espaço mais definido no interior da historiografia contemporânea, corresponde a um que campo histórico bastante singular que se mostra definido e atravessado por preocupações muito específicas oriundas da Psicologia – ainda mais intensamente do que a História das Mentalidades e a História do Imaginário – e principalmente por conceitos de diversos tipos desenvolvidos no interior deste campo do saber. O historiador das mentalidades Jean Delumeau, por exemplo, lança mão em alguns momentos de conceitos elaborados por Wilhelm Reich e Erich Fromm, autores que seria interessante considerar para encaminhar uma reflexão sobre a Psico-História.

Reich e Fromm desenvolveram noções que ainda poderão ser utilizadas, de modo mais habitual e consistente, pelos futuros historiadores. O primeiro envidou esforços no sentido de estabelecer a conceituação de um “caráter social”, que se constituiria a partir de uma interação entre a ideologia e o inconsciente, aqui representado por certos padrões e alternativas de comportamento que seriam interiorizadas pelos indivíduos que vivem em sociedade[8]. Além disto, Reich chama atenção para o papel da Família na formação do tipo caráter individual que sustentaria a ordem política e econômica da sociedade (REICH, 1969)[9]. Conseqüentemente, sugere que deveríamos examinar a estrutura da família e suas práticas de criação dos filhos em uma época histórica para compreender como as realidades econômicas são traduzidas em política, ética e religião. Dito de outra forma, seria possível analisar as principais forças sociais presentes em determinada sociedade em função da situação familiar típica e da estrutura do caráter, o que toca pelos dois lados no projeto de alguns dos historiadores das mentalidades que estudaram a Família e a Criança, como Philippe Ariès (1981).

Aprimorando o conceito de “caráter social”, Erich Fromm também se expressa em termos de um “filtro condicionado socialmente”[10]. O “filtro social” seria constituído por uma série de elementos, como a linguagem, a lógica e os tabus sociais, mas também por toda uma série de hábitos enraizados, de atitudes automatizadas e de impulsos que dão origem a práticas culturais diversas. É interessante comparar o conceito de caráter social em Fromm com a noção de “mentalidade de época” que seria desenvolvida depois, no final da década de 1960, por alguns historiadores franceses ligados a Novelle Histoire. Para Erich Fromm, o caráter social corresponderia a “um núcleo da estrutura do caráter que é inerente à maioria dos membros da mesma cultura, diferentemente do caráter individual que varia entre as pessoas da mesma cultura” (FROMM, 1959: p.78). Ou seja, existiria em qualquer sociedade uma estrutura única de caráter que seria específica dela e comum à maioria dos grupos e classes que fizessem parte desta sociedade.

Por outro lado, em outra oportunidade Fromm reconhece a noção de que diferentes classes dentro da sociedade tenham um determinado caráter social sob cuja base diferentes idéias podem se desenvolver e adquirir força (FROMM, 1964: p.279). Para além disto, é importante ressaltar a adaptação de todas estas noções aos princípios fundamentais do Materialismo Histórico, dos quais este teórico ligado à Escola de Frankfurt parte primordialmente. Para Erich Fromm, “o caráter social é um elo de ligação entre a estrutura econômico-social e as idéias e ideais que ganharam difusão na sociedade”, e sua influência exerce-se nas duas direções: da base econômica às idéias e das idéias à base econômica (o que se sintoniza com a flexibilização do determinismo histórico que foi encaminhada por diversos autores importantes do Marxismo no século XX) (FROMM, 1963: p.93).

Wilhelm Reich e Erich Fromm, para não falar em Freud, são apenas dois dos muitos autores que têm exercido alguma influência nos historiadores, ainda poucos, os quais têm buscado constituir um campo novo a partir da interconexão entre História e Psicologia. Seria esta exploração mais sistemática de diversificadas noções e conceitos desenvolvidos no âmbito da Psicanálise o que poderia distinguir mais propriamente a Psico-História (ou a psicologia histórica) da História das Mentalidades, já que o terreno em que ambas se movimentam seria a princípio o mesmo.

Vale lembrar, para citar um exemplo que tem influenciado mais incisivamente os historiadores da atualidade, que o sociólogo-historiador (e médico) Norbert Elias também percorreu caminhos similares ao examinar a interiorização de certos modos de agir e de sentir que passam a condicionar os indivíduos em sociedade. Embora sem indicar Freud como interlocutor, o sociólogo alemão vale-se por diversas vezes de noções oriundas do campo da Psicanálise ¾ como as das “pulsões” – para embasar seu mais célebre trabalho: O Processo Civilizador (ELIAS, 1990). Trata-se de uma cuidadosa análise social que objetiva mostrar como a interiorização de certos hábitos é o contraponto psico-social de um Processo Civilizador que foi se produzindo desde o período medieval, e que se instala gradualmente no Ocidente a partir de poderes centralizados em torno dos modernos estados nacionais.

Em diversos aspectos, O Processo Civilizador tem ligações muito definidas com A Sociedade de Corte (ELIAS, 1986), obra anterior em que Norbert Elias já havia estabelecido os parâmetros do tipo de sociologia histórica que pretendia propor com suas obras. A idéia é examinar, explica ele na Introdução desta última obra, não os indivíduos do passado histórico tomados como únicos em si mesmos e como possuidores de uma expressiva liberdade para agir no mundo histórico (tendência que Elias sugeria ser a dos historiadores alemães de seu tempo), mas sim a rede de interdependências e condicionamentos que inscreveriam todos estes seres humanos em sociedade. Isto explica, aliás, a atualidade da obra de Elias: no decurso do século XX foi se afirmando cada vez mais uma historiografia que se opunha precisamente ao historicismo criticado pelo sociólogo alemão, tanto no que se refere ao surgimento da vertente francesa inaugurada pelos Annales, como através dos novos desenvolvimentos historiográficos inscritos no Materialismo Dialético. Assim a sociologia histórica proposta por Elias – diretamente preocupada com as determinações que impõem um limite aos destinos pessoais – foi sendo identificada cada vez mais com uma História que avançou na mesma direção nas suas inúmeras modalidades.

É interessante constatar, aliás, que mesmo no período pós-Annales e pós-Novelle Histoire, marcado por novos desenvolvimentos como a Micro-História, uma obra como A Sociedade de Corte continua a mostrar-se sintonizada com alguns dos mais recentes caminhos historiográficos. O que se faz nesta obra, senão tomar um universo micro-recortado – a corte dos reis de França entre Francisco I e Luís XIV com todo o seu sistema ritualizado pela etiqueta – para a partir daí examinar a rede de relacionamentos e imposições de comportamento que passam a constranger os indivíduos, produzindo de um lado estratégias daqueles que são obrigados a se movimentarem neste sistema, e de outro lado automatismos a serem decifrados pelos sociólogos e historiadores? O que se faz nesta obra, ainda, senão uma tentativa de apreender a sociedade do Antigo Regime a partir desta formação social mais específica que é a ‘corte principesca’, oferecendo àqueles que puderem decifrá-la as chaves para compreender padrões de comportamento que se difundem para a sociedade mais ampla?

Para utilizar um comentário pertinente de Roger Chartier, que tomaria mais tarde a obra de Norbert Elias como um dos modelos de sua História Cultural, é possível dizer que o que o sociólogo alemão está propondo é precisamente “estabelecer as leis de funcionamento das formas sociais a partir de um exame minucioso de uma de suas atualizações históricas” (CHARTIER, 1990: p.91-119). Trata-se, então, de dar uma tríplice utilidade a este estudo de caso: por um lado utilizando-o para compreender certos aspectos do Antigo Regime; por outro lado aproveitando-o para investigar, a partir das comparações com que Elias enriquece o livro, se uma formação social como a ‘corte’ produziria efeitos similares em outras sociedades; por fim – e é este o aspecto que nos interessa mais especificamente nesta seção em que estamos abordando a Psico-História – Elias propõe-se a examinar a função da corte em um processo de civilização que transforma radicalmente a economia psíquica dos homens entre os séculos XII e XIII.

O objetivo central de O Processo Civilizador também se enquadra perfeitamente neste campo intradisciplinar que poderia ser definido como uma Psico-História, ou nestes interstícios situados entre a História e a Psicologia (e que Norbert Elias pretendia inscrever no interior do campo sociológico). Trata-se de investigar nesta obra de 1939 a variação das normas de agressividade no tempo, e de examinar como estas normas se refinam (ou civilizam-se) de modo a transferir um controle que antes era exercido de fora para um espaço intra-individual e intersubjetivo onde o indivíduo entroniza as regras e interdições sociais até que passa a agir automaticamente, de maneira autocoativa. Dito de outro modo, o que Elias está estudando neste livro é a formação de um psiquismo específico no homem Ocidental, que está precisamente ligado a motivações sócio-históricas.

Na verdade, o enquadramento de O Processo Civilizador em um campo que poderia ser definido como uma Psico-História é autorizado pelo próprio Norbert Elias, já que no segundo volume desta obra ele reclama precisamente a constituição de uma ciência humana que ainda não existia, e que poderia ser chamada de “psicologia histórica”, vindo esta a ocupar o vazio produzido pelo abismo que separa uma História não-psicologizada de uma Psicologia que recusa a si mesma pensar historicamente seus objetos (ELIAS, 1990 (2): p.234):

“Exatamente porque o psicólogo pensa não-historicamente, porque aborda as estruturas psicológicas dos homens de nossos dias como se fossem algo sem evolução ou mudança, os resultados de suas investigações de pouco servem ao historiador. E porque, preocupado com o que chama de fatos, evita problemas psicológicos, o historiador pouco tem a dizer ao psicólogo”

É este diálogo de surdos, onde psicólogos e historiadores habitam constelações teóricas separadas por anos-luz de incompreensão mútua, o que Norbert Elias propõe-se a superar. A Psicologia Social Histórica, tal como a define o sociólogo alemão em outro passo de O Processo Civilizador, deveria produzir estudos simultaneamente psicogenéticos e sociogenéticos. E é isto o que Elias realiza efetivamente com suas obras.

Norbert Elias foi na verdade um crítico contumaz da Psicanálise enquanto campo de saber até então redutor e tendente à não-historicização. Criticou-lhe – além da a-historicidade ¾ a utilização dos conceitos de Ego, Id e Superego para identificar compartimentos separados da mente humana, propondo, ao contrário, uma atenção especial às relações entre estes três conjuntos de funções psicológicas. Seu objetivo era investigar as relações entre os sentimentos controlados pelos indivíduos humanos e aquelas agências controladoras da psique, mas chamando atenção para o fato de que a estrutura média ou habitual destas agências controladoras (ego, superego) vai se transformando no decurso de um processo civilizador como aquele que foi sendo produzido socialmente no Ocidente à medida que se sofisticava e se transmudava a rede de interdependências humanas. Introduzir simultaneamente uma abordagem social e uma profunda consciência histórica no âmbito da Psicologia foi a sua pedra de toque.

Da mesma forma, Norbert Elias foi um crítico arguto da historiografia alemã de sua época, seja a associada àquele tipo de História das Idéias que almejava investigar o pensamento humano desencarnado de sua sociedade, seja a historiografia que, a título de examinar a sociedade nas suas relações concretas, acabava por abstrair esta sociedade de um universo mental que constitui parte fundamental de sua própria vida. Romper o isolamento injustificável entre estes dois tipos de História, e reinstaurar o diálogo de uma História simultaneamente mental e concreta com a disciplina da Psicologia ¾ este foi um dos seus projetos mais pessoais, vindo a constituir-se em uma contribuição decisiva para este campo que rigorosamente nem começou ainda a se formar, mas que desde já poderemos chamar de Psico-História.

Os maiores riscos que rondam a Psico-História envolvem de um modo ou de outro os chamados “perigos do Anacronismo”. O que é Anacronismo? Em primeiro lugar, é preciso considerar que o historiador, ao examinar uma determinada sociedade localizada no passado, está sempre operando com categorias de seu próprio tempo (mesmo que ele não queira). Daí aquela célebre frase de Benedetto Croce, que dizia que “toda história é contemporânea”. Isto quer dizer que mesmo a História Antiga e a História Medieval são histórias contemporâneas, porque feitas pelos historiadores de nosso tempo (e voltada para leitores de nosso tempo). Há uma tensão muito delicada que envolve esta inarredável característica do trabalho historiográfico: por um lado o historiador deve conservar a consciência de que trabalhará com as categorias de seu tempo (as únicas que lhe serão possíveis), mas por outro lado deverá evitar que estas categorias deturpem as suas possibilidades de compreender os homens do passado, que tinham as suas próprias categorias de pensamento e de sensibilidade. Por exemplo, os métodos que um historiador emprega serão sempre métodos seus, desenvolvidos na sua própria época: assim, ele poderá empregar os recursos da análise semiótica, só desenvolvidos recentemente, para examinar fontes da história antiga ou medieval; e poderá elaborar novos conceitos, somente tornados possíveis no seu tempo, para iluminar uma época anterior à sua.

Não há o menor problema nestes usos. Aliás, são precisa-mente os usos de novas técnicas, conceitos e modos de ver uma realidade passada o que assegura que a História de uma deter-minada época deverá ser sempre recontada. A questão do Anacronismo é muitas vezes mal interpretada. Não tenho porque me constranger de utilizar a expressão “ataque cardíaco” para uma morte deste tipo ocorrida na Antigüidade Greco-Romana ou na Idade Média só porque os homens de então se referiam a estes males como “mal súbito”.

O que não posso é dizer que um determinado grupo de mulheres destas épocas, dadas as suas atitudes de resistência ao controle masculino em um tempo em que estas resistências não eram esperadas, eram “feministas”. O erro, neste caso, está em que estou lhes atribuindo uma categoria de pensamento que só surgiu nas mulheres do século XX – à luz de uma equivalente conquista de direitos políticos e de obtenção de espaço social e profissional – e transferindo isto para uma época em que o discurso feminista simplesmente não existia. O discurso feminista é datado, e na verdade inseparável das condições de seu surgimento e perpetuação. Se quero tentar compreender as mulheres da Antigüidade e da Idade Média que resistiram à sociedade misógina de suas épocas, devo tentar perceber como elas viam o mundo, através de que categorias de pensamentos, a partir de que práticas e representações. Devo examinar, além disto, a excepcionalidade ou não do comportamento deste ou daquele grupo, que sentido os componentes deste grupo atribuíam aos seus próprios discursos. Devo refletir longamente sobre as suas palavras (que certamente não incluirão a expressão “porco chauvinista”). Metaforicamente falando, deverei sintonizar neste caso esta singular estação que é a mulher antiga ou medieval, sempre com a consciência de que deverei apreender um idioma estrangeiro, diferente do meu.

Muitas vezes os historiadores de nosso tempo, que aprendem desde cedo na Academia que o maior pecado para um historiador é o do Anacronismo, quase se sentem tentados a mandar confeccionar um manto medieval para depois se encerrarem nos seus gabinetes de estudo com uma roupa apropriada para iniciar uma investigação sobre a ordem medieval dos Templários. Não é isto o que os libertará dos riscos do Anacronismo, e nem um eventual horror a utilizar categorias teóricas contemporâneas na hora de analisar uma fonte histórica. Se assim fosse, a própria discussão sobre a possibilidade de diálogo entre a História e a Psicologia, ou entre a História e a Semiótica, seria inviável ... já que não existiam estes campos de saber naquelas épocas mais remotas (e já que, rigorosamente, a própria História não existia da maneira como hoje concebemos este campo de conhecimento).

O que o historiador não deve fazer, com vistas a evitar os riscos do anacronismo, é inadvertidamente projetar categorias de pensamento que são só suas e dos homens de sua época nas mentes das pessoas de uma determinada sociedade ou de um determinado período. Para compreender os pensamentos de um chinês da época dos mandarins, terei de me avizinhar dos códigos que (tanto quanto me for possível perceber) regeriam o universo mental dos chineses. Este exercício de compreender o ‘outro chinês’ é que tem que ser feito. Mas não é a análise que tem de ser chinesa.

Compreendido isto, poderemos retornar agora aos problemas do diálogo entre História e Psicologia. Lucien Febvre, em um texto visionário, deixou registrado um alerta que poderemos reproduzir literalmente aqui, já que diz tudo:

“Muito já dissemos para mostrar que, se evitarmos projetar o presente, o nosso presente, no passado; se rejeitarmos o anacronismo psicológico, o pior de todos, o mais insidioso e o mais grave; se pretendermos esclarecer todas as atitudes das sociedades e, inicialmente, suas atitudes mentais, pelo exame de suas condições gerais de existência ¾ é evidente que não poderemos considerar como válidas, para esse passado, as descrições e constatações de nossos psicólogos, operando sobre dados que nossa época lhes fornece. É também evidente que uma psicologia histórica verdadeira só será possível pelo acordo, negociado claramente, do psicólogo com o historiador. Este orientado por aquele. Mas aquele claramente tributário do primeiro, e obrigado a procurá-lo, para criar suas condições de trabalho. Trabalho em colaboração. Trabalho em equipe, para falar mais claramente” (FEBVRE, 1978: p.118)

A Psico-História, enfim, mostra-se um campo promissor, que requer naturalmente os seus cuidados. Uma última tentação a evitar nos trabalhos que poderiam ser enquadrados pela Psico-História é a de pretender psicanalisar os homens do passado, como se estes pudessem “deitar-se no divã de um hipotético historiador psicanalista”[11]. Naturalmente, sabe-se que o processo psicanalítico, pelo menos no sentido freudiano, necessita ser construído a partir de um discurso interativo com o ‘outro’ – o que seria impossível no caso dos atores sociais do passado que nos chegam através das fontes.

Para citar um último conjunto de historiadores que têm investido na conformação de uma ainda incipiente Psico-História, poderemos registrar que também entre os historiadores ligados à herança dos Annales começaram a surgir no final do século XX algumas contribuições importantes. Destes, talvez o mais entusiasmado com as possibilidades de diálogo com a Psicanálise seja Alain Besançon, que escreveu um texto sobre o Inconsciente para a obra coletiva da Nova História coordenada por Pierre Nora e Jacques Le Goff (1988). Fora do circuito francês, o grande marco nas tentativas de repensar as relações entre História e Psicanálise está registrado na obra Freud para Historiadores, de Peter Gay (1989). E a sua própria série de obras sobre os padrões de afetividade e sexualidade na época vitoriana dão uma idéia dos caminhos possíveis a partir deste diálogo (1988).

Para concluir esse grande paralelo entre as modalidades da História que atentam mais particularmente para o universo mental e para o campo das sensibilidades humanas, e que têm explorado através de abordagens históricas os labirintos da psicologia humana, será oportuno lembrar que a Psico-História, a História das Mentalidades, e a História do Imaginário deixaram certamente a sua marca em uma historiografia contemporânea que buscou a partir do século XX inserir-se em uma perspectiva interdisciplinar. Contudo, as reflexões e preocupações encaminhadas por estas modalidades históricas, bem como seus investimentos metodológicos e seus aportes teóricos, estão ainda longe de se esgotar à altura deste novo milênio que a pouco se iniciou. O universo mental dos homens, considerados em sua vida social, é certamente ainda um enigma que possivelmente nunca será decifrado, mas que em todo o caso sempre atrairá o interesse dos historiadores.

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________. Piétè baroque et déchristianisation, les atitudes devant la mort en Provence au XVIII siècle. Paris: Le Seuil, 1978.
Notas

[1] O presente artigo remete, como referência principal, a um livro publicado recentemente pelo autor, e que se refere a um estudo das várias modalidades da História. Nesta obra, o autor apresenta as diversas modalidades da História em que hoje se organiza o saber historiográfico, discutindo modalidades como a História Cultural, a História Política, a Micro-História, e muitas outras. Neste artigo, o autor discute três modalidades da história que dialogam de perto com o conceito de Imaginário: a História das Mentalidades, a História do Imaginário, e a Psico-História. Referências: José D’Assunção Barros, O Campo da História – Especialidades e Abordagens, Petrópolis: Vozes, 2004, 222pp.

[2] Doutor em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF); Professor da Universidade Severino Sombras (USS) de Vassouras (RJ), nos Cursos de Mestrado e Graduação em História, onde leciona disciplinas ligadas ao campo da Teoria e Metodologia da História. Publicou recentemente os livros O Campo da História (Petrópolis: Vozes, 2004) e O Projeto de Pesquisa em História (Petrópolis: Vozes, 2005).

[3] Alguns artigos podem ser esclarecedores a respeito deste campo histórico: (1) Jacques Le Goff, “As mentalidades: uma história ambígua” (Le Goff e P. Nora, 1988: 68-83; (2) Philippe ARIÈS, “A História das Mentalidades” (Le Goff (org.), 1990: 154-176; (3) Darton, “a História das Mentalidades – o caso do olho errante” (1990: 225-255).

[4] Na verdade, a expressão “história em migalhas” chegou a ser referida de maneira afirmativa (não-depreciativa) por Pierre Nora –organizador de uma coletânea de artigos da Nova História francesa. Pierre Nora enunciou a expressão em uma entrevista concedida a um jornal francês em 1974, e com ela anunciava a consolidação de uma moda que passava a privilegiar as curiosidades, os temas exóticos, ou pelo menos o estudo de objetos muito particularizados em contraste com os antigos projetos de produzir uma grande história total.

[5] Em O Campo da História – Especialidades e Abordagens (2004), o autor deste artigo propõe um esclarecimento acerca dos critérios a partir dos quais devem ser pensados e repensados os vários campos e modalidades da História. Ao lado das abordagens, que se referem aos métodos e modos de fazer, e dos domínios, que se referem a campos temáticos privilegiados pelos historiadores, as dimensões correspondem àquilo que o historiador traz para primeiro plano no seu exame de uma determinada sociedade: a Política, a Cultura, a Economia, a Demografia, e assim por diante.

[6] A Micro-História corresponde a uma modalidade da História que procura empregar uma nova escala de observação no exame das sociedades históricas. Elegendo como campo de observação um determinado locus bem circunscrito – uma vida anônima, uma prática social localizada, uma comunidade – a Micro-História almeja conhecer através da gota d’água algo do oceano inteiro. Para utilizar uma metáfora comum entre os micro-historiadores, abandona-se aqui o “telescópio” em favor do “microscópio”, o olhar panorâmico e distanciado em favor do olhar detalhista e aproximador.

[7] O historiador polonês Bronislaw Geremek é autor de Os Marginais parisienses nos sécs XIV e XV, de A piedade e a forca (1995), e de outras obras importantes. Mandrou foi autor de Magistrados e feiticeiros na França do século XVII (1979), um marco da História das Mentalidades escrito já em 1968.

[8] A idéia de que a ideologia torna-se psicologicamente internalizada ou fixada na estrutura de caráter do indivíduo aparece em Psicologia de Massas do Fascismo (REICH, 1990) [texto original de 1933].

[9] É verdade que, em Reich, este projeto permanece muito incipiente, já que, ao invés de empenhar-se em uma análise sistemática das diferentes estruturas históricas da família e de criação dos filhos, ele grosso modo reduz sua análise a dois tipos históricos básicos: o “patriarcado autoritário” e o “matriarcado tolerante”, fixando-se em 4000 a. C. a transição de um modelo a outro. Em todo o caso, desconta-se o fato de que Reich não era historiador, e nem possuía a erudição histórica de um Erich Fromm.

[10] O conceito de “filtro socialmente condicionado” é introduzido por Erich Fromm para referir-se à formação de um “inconsciente social” mais amplo (FROMM, 1963: p.125).

[11] Esta imagem foi utilizada ironicamente por Le Roy Ladurie, que também dialoga eventualmente com a teoria psicanalítica (LADURIE, 1974: p.284). [original de 1966].

PEQUENA BIOGRAFIA DO AUTOR

José D’Assunção Barros é Historiador e Professor de História, com Doutorado pela Universidade Federal Fluminense. Tem atuado desde 2000 nos cursos de Graduação e Mestrado em História da Universidade USS de Vassouras, ali desenvolvendo pesquisas sistemáticas na área de História Cultural. No Ensino de História, tem se especializado tanto nas áreas de Metodologia, Teoria e Historiografia, como nas áreas de História Cultural e História da Arte. Também possui formação em Música, e desde 1991 leciona História da Música nos cursos de Graduação do Conservatório Brasileiro de Música, onde também desenvolve pesquisa na área de Musicologia. Entre seus livros mais recentes na área de História, ressaltam-se O Campo da História (Petrópolis: Vozes, 2005) e O Projeto de Pesquisa em História (Petrópolis: Vozes, 2005). Na área de Musicologia, iniciou uma série de livros sobre a História da Música Brasileira cujo primeiro volume intitula-se Raízes da Música Brasileira (São Paulo: Hucitec, 2005).