RECANTO DAS LETRAS

quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

SOBRE O LIVRO 1984


Mil Novecentos e Oitenta e Quatro (título original Nineteen Eighty-Four) é o título de um romance escrito por Eric Arthur Blair sob o pseudônimo de George Orwell e publicado em 8 de Junho de 1948 que retrata o cotidiano numa sociedade totalitária. O título vem da inversão do dois últimos dígitos do ano em que o livro foi escrito, 1948.
O romance é considerado uma das mais citadas distopias literárias, junto com Fahrenheit 451, Admirável Mundo Novo e Laranja Mecânica. Nele é retratada uma sociedade onde o Estado é onipresente, com a capacidade de alterar a história e o idioma, de oprimir e torturar o povo e de travar uma guerra sem fim, com o objetivo de manter a sua estrutura inabalada.

RESUMO



No livro conta-se a história de Winston, um apagado funcionário do Ministério da Verdade de Oceânia e de como ele parte da indiferença perante a sociedade totalitária em que vive, passa à revolta, levado pelo amor por Júlia e incentivado por O'Brian, um membro do Partido Interno com quem Winston simpatiza; e de como acaba por descobrir que a própria revolta é fomentada pelo Partido no poder. E também de como, no Quarto 101, todo homem tem os seus limites.
A trama se passa na Pista No.1, o nome da Inglaterra sob o regime totalitário do Grande Irmão (no original, Big Brother) e sua ideologia IngSoc, e conta a história de Winston Smith, funcionário do Ministério da Verdade, um órgão que cuida da informação pública do governo. Diariamente, os cidadãos devem parar o trabalho por dois minutos e se dedicar a atacar histericamente o traidor foragido Emmanuel Goldstein e, em seguida, adorar a figura do Grande Irmão. Smith não tem muita memória de sua infância ou dos anos anteriores à mudança política e, ironicamente, trabalha no serviço de rectificação de notícias já publicadas, publicando versões retroactivas de edições históricas do jornal The Times. Estranhamente, ele começa a interessar-se pela sua colega de trabalho Julia, num ambiente em que sexo, senão para procriação, é considerado crime. Ao mesmo tempo, Winston é cooptado por O'Brien, um burocrata do círculo interno do IngSoc que tenta cooptá-lo a não abandonar a fé no Grande Irmão.
De facto, Mil Novecentos e Oitenta e Quatro é uma metáfora sobre o poder e as sociedades modernas. George Orwell escreveu-o animado de um sentido de urgência, para avisar os seus contemporâneos e as gerações futuras do perigo que corriam, e lutou desesperadamente contra a morte - sofria de tuberculose - para poder acabá-lo. Ele foi um dos primeiros simpatizantes ocidentais da esquerda que percebeu para onde o estalinismo caminhava e é aí que ele vai buscar a inspiração - lendo Mil Novecentos e Oitenta e Quatro percebe-se que o Grande Irmão não é senão Stalin e que o arquiinimigo Goldstein não é senão Trotsky. Além de Stalin, também Hitler e Churchill inspiraram Orwell a escrever o romance.
O estado controlava o pensamento dos cidadãos, entre muitos outros meios, pela manipulação da língua. Os especialistas do Ministério da Verdade criaram a Novilíngua, uma língua ainda em construção, que quando estivesse finalmente completa impediria a expressão de qualquer opinião contrária ao regime. Uma das mais curiosas palavras da Novilíngua é a palavra duplipensar que corresponde a um conceito segundo no qual é possível o individuo conviver simultaneamente com duas crenças diametralmente opostas e aceitar a ambas.
Outra palavra da Novilíngua era Teletela, nome dado a um dispositivo através do qual o Estado vigiava cada cidadão. A Teletela era como que um televisor bidirecional, isto é, que permitia tanto ver quanto ser visto.
No livro, Orwell expõe uma teoria da Guerra. Segundo ele, o objectivo da guerra não é vencer o inimigo nem lutar por uma causa. O objetivo da guerra é manter o poder das classes altas, limitando o acesso à educação, à cultura e aos bens materiais das classes baixas. A guerra serve para destruir os bens materiais produzidos pelos pobres e para impedir que eles acumulem cultura e riqueza e se tornem uma ameaça aos poderosos.



















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LINK PARA BAIXAR O LIVRO





http://www.esnips.com/nsdoc/aeec125c-e8de-4e79-b597-c9b3c2fd7a03








DEPOIS DE LER O LIVRO VEJA O FILME

O livro foi adaptado para o cinema no próprio ano de 1984, dando origem a um longa-metragem que tem no elenco o ator John Hurt como Winston, Richard Burton como O'Brien (em seu último papel no cinema) e trilha sonora que inclui canções do grupo Eurythmics.

LINK DO TRAILER:





http://www.youtube.com/watch?v=QF51CqBy81U


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Curiosidades


Numa altura em que o Big Brother faz furor na televisão, talvez poucos saibam que a expressão foi tirada deste livro e dos cartazes que ornamentavam as ruas de Londres no romance de George Orwell - uma fotografia do Grande Irmão com a legenda "Big Brother is watching you" (O Grande Irmão está a observar-te).
A história em quadrinhos, posteriormente adaptada ao cinema, 'V de Vingança' (V for Vendetta), de autoria de Alan Moore e desenhada por David Lloyd se desenvolve em uma sociedade claramente inspirada no romance 1984. Tanto nos quadrinhos quanto no filme, a estética utilizada, bem como alguns aspectos do próprio governo, em muito se assemelham às descrições de George Orwell.
No filme Equilibrium temos também uma distopia que apresenta diversos traços de semelhança com a retratada por Orwell em 1984.

sexta-feira, 23 de novembro de 2007

quinta-feira, 22 de novembro de 2007

AS MEDITAÇÕES METAFISICAS E O NASCIMENTO DA SUBJETIVIDADE MODERNA

As meditações cartesianas e o nascimento da subjetividade moderna

Esse texto procura analisar o modo como Descartes formulou o problema da dúvida hiperbólica na primeira meditação e provou como a alma é mais fácil de conhecer do que o corpo, dando início assim ao nascimento do sujeito moderno, e gerando a semente do idealismo radical e solipsista.

O texto está ambientado no final do Renascimento, e o autor, como Bacon, procurava formular a base sólida e metódica da ciência moderna, mais enxuta e prática do que a medieval, esta baseada principalmente em Aristóteles. O Renascimento é geralmente considerado um período de transição entre a Idade Média e a Idade Moderna; sendo assim, os autores desse período não teriam características completas de nenhuma dessas idades. No entanto, a esse tempo pertencem autores do porte de More, Erasmo, Maquiavel e outros humanistas, cientistas como Galileu e Copérnico, artistas até hoje colocados entre os melhores do mundo (principalmente os italianos e os irmãos Van Eyck, que revolucionaram a pintura com a técnica a óleo), e por isso alguns estudiosos modernos resolveram interpretar o pensamento renascentista como um sistema completo e estruturado.

O racionalismo nessa época não era tão exacerbado, apesar de a razão já ter sido considerada o principal instrumento para conhecer o mundo. O universo era considerado, segundo o conceito de Semelhança, como um todo harmônico, cuja harmonia era feita por seres que se relacionam por amizade e ódio. Essas relações são a própria causa da compreensão de uma coisa por outra, de fato, devido a esse sentimento de totalidade, uma coisa é signo de outra.

Não pretendo entrar em detalhes de como estavam divididas as atividades do saber, a filosofia natural, a magia e a alquimia. Muitas correntes estavam em desacordo com outras, e o pensamento avançava, às vezes contraditório, às vezes indo contra a estrutura social retaliadora e centenária, em busca de um conhecimento não mais cíclico teocêntrico, mas sim de domínio sobre a natureza, da virtú contra a fortuna, antropocentrado, buscando conhecer o mundo ao redor através de leis comprovadas pela razão. Deus, nesse momento, é conhecido pela teologia, o cosmos pela astrologia, e o poder pela filosofia política, cujo maior exemplo é Maquiavel. O princípio arcano (arché= início, primórdio) é então dado como secreto e incognoscível. Giordano Bruno refuta a divisão do mundo como terreno (humano) e celeste (divino), e o declara infinito. Assim, todo o lugar é centro, e nenhum lugar é circunferência. Pagou preço caro por isso. A frase Sapere audi (Ousa saber) exemplifica bem a busca ousada por respostas novas.

A razão e a fé são campos diferentes de busca. Estiveram misturadas na teologia escolástica, mas Descartes declara, em seu Discurso do método para bem conduzir a própria razão e procurar a verdade nas ciências, que as verdades divinas estão além dos raciocínios comuns, e é necessário assistência divina e mesmo ser mais que um simples homem para ter acesso à revelação. É nessa primeira parte do discurso do método que Descartes explicita seu descontentamento com a forma como eram conduzidos a ciência e a filosofia pelos doutos senhores de Academias e escolásticos. A atividade social era muito importante para ser considerado digno. Muitas vezes, uma pessoa já conseguia a glória independente de sua personalidade ou valor pessoal, mas sim por ocupar certo cargo importante.

Mas vamos entender melhor as críticas às teorias aristotélicas. Aristóteles havia definido dez tipos de substâncias diferentes (qualidade, quantidade, relação, tempo, posse, lugar, ação, paixão, etc.). Uma substância é aquilo que existe em si e por si, sem depender de outra coisa. Todo o resto são os modos ou atributos das substâncias. A física aristotélica estudava o movimento, sendo movimento entendido como qualquer alteração. Tudo o que é matéria se move, pois é imperfeito, e está sujeito ao devir. O imperfeito aspira à perfeição, e o perfeito não muda. Para Aristóteles, só Deus não mudava. Seu Deus era assim, imóvel para si mesmo, causa primeira de tudo, não deseja nada, pois nada lhe falta. Os corpos podem ser pesados e leves, e são animados por um movimento eterno. A principal virtude é a amizade. Os seres se modificam segundo regras fixas, estabelecidas pela causa final (aquela da finalidade da mudança de um corpo). A inteligência (entelechia) se move em direção a um fim. No aristotelismo, as causas podem ser:

1.material
2.formal
3.eficiente
4.final

Com o surgimento da nova física moderna, de Kepler, Copérnico e Galileu, o aristotelismo cai por terra, com a prova de que é a Terra que gira em torno do Sol, e não o contrário.

Apenas a causa eficiente vai permanecer na filosofia moderna, e se tornar a lei da causalidade. Na causa eficiente deve haver tanta ou mais realidade que o efeito (conforme explicado por Descartes no início da 3ª meditação), e causa e o efeito devem ser da mesma natureza. E Descartes vai declarar viva apenas três substâncias: a extensa, o pensamento, e a divina.

Com toda essa reviravolta no que até então era considerado certo, e que servia de base para a educação do europeu, Descartes resolve abandonar esse ensino, e procurar a verdade no Grande Livro do Mundo. Depois de duvidar de tudo que tinha aprendido, encontrava-se nas trevas, sozinho. Ele precisava de um método para recomeçar a construir o caminho do conhecimento, ou pelo menos as bases dele. O método dá origem a um problema fundamental da filosofia moderna: o sujeito do conhecimento. Esse sujeito serve para controlar a razão nos ditames do conhecimento. A base de toda descoberta é um axioma tirado por intuição intelectual, mas para ir além dele se deve usar da dedução. A corrente dedutiva leva em conta a ordem das razões, isto é, a ordem como as coisas se apresentam ao entendimento em seus graus de simplicidade, e não a ordem das matérias, ou a ordem das coisas nelas mesmas. Para Descartes, o mais simples era o mais absoluto, por ser o mais universal. Até a modernidade, o objeto era considerado com características que deveriam imprimir no sujeito o conhecimento verdadeiro. Com Descartes, o sujeito deve buscar, através da razão, melhorar suas características para buscar o conhecimento verdadeiro. O método para se conduzir a razão está ligado à arte (ars), que como técnica, se opõe ao acaso. Deve ter regras simples e universais, e com o menor número de regras descobrir o maior número de coisas. Descartes tira da certeza da geometria, a noção de que é preciso um procedimento para conhecer. Daí a importância fundamental da ordem e da medida. O pensamento contínuo deve buscar uma proporção contínua, e ir aumentando gradualmente seu saber. Mas para não recorrer em erro, é preciso que se entenda ser o método necessário para a busca da verdade. A razão precisa de auxílio, e de disciplina. Uma das regras é a da enumeração. Os passos da cadeia de pensamentos devem ser repetidos várias vezes, até se aproximarem da certeza da dedução. O entendimento é o único capaz de conhecer, mas é auxiliado nessa tarefa pela memória e imaginação.

Para começar um conhecimento sólido e seguro, claro e distinto, devemos livrar nossas mentes das falsas certezas. Daí ser necessária a dúvida metódica e a meditação. O ato de meditar é um recolher-se em si mesmo, onde são passadas a limpo nossas próprias falhas, recapitulando noções marcantes, se afastando assim dos vícios corporais e buscando elevar a alma. O ato de duvidar não é à toa, mas vem por razões maduramente consideradas, tanto que Descartes só o fez quando já tinha esperado tanto a hora certa, que não mais poderia fazer novamente. A dúvida cartesiana não é cética, pois o cético não acredita ser o homem capaz de ver qualquer verdade. Antes disso, a dúvida é um instrumento epistemológico, um recurso que o sujeito do conhecimento tem a seu dispor.

O que é duvidoso é aquilo a respeito do qual eu posso perguntar ser de uma maneira diferente. Ou seja, pode ser considerado possível ilusão aquilo que é inseguro. Todo o processo passível de dúvida gera uma série de conhecimentos que estão na alçada da dúvida. A dúvida não é idiossincrática, mas trata dos alicerces e bases do conhecimento. A primeira meditação é conhecida como a da dúvida hiperbólica, exagerada. A primeira dúvida é a dos sentidos. Os sentidos algumas vezes são enganosos. Para validar a dúvida dos sentidos, Descartes retoma o argumento dos sonho. Não sabe se está sonhando ou acordado. Afinal estou aqui nesta cadeira, mas muitas vezes tive impressão de algo com aparência semelhante quando estava sonhando. Ou seja, você é iludido durante o sonho achando que está acordado. Daí a importância fundamental de se perceber estar em um sonho e a começar a explorar o espaço-éter. Como todos sonham, o argumento do sonho é válido, e o meditante não está louco, como os mendigos que juram estar cobertos por ouro.

O sexto parágrafo apresenta a comparação muito interessante entre a pintura e os sonhos. Diz nosso autor que os sonhos são como quadros e pinturas, e não podem ser formados senão à semelhança de algo real e verdadeiro. Os pintores usam de todo o artifício para fazer uma forma inteiramente nova, mas tudo o que conseguem é combinar misturar. A palavra artifício significa justamente isso, combinar e compor com o que já existe na natureza. A palavra facio está ligada a factum (feito) e fictum, essa última ligada a fingio, ligada a ficio. O artista, através de sua técnica, cria uma ficção, uma quimera (chimaera), como no caso de sátiros e sereias. É a combinação heterogênea de uma coisa por outras coisas, é só pode ser entendida como representação, muitas vezes só pode ser dita e não pensada. A dúvida encontra seu limite nos sétimo e oitavo parágrafos. Não é permitido duvidar das naturezas simples das percepções, como o espaço e o tempo, figura, etc. A geometria e aritmética, que trata de coisas simples e universais não estão sujeitas a dúvidas. Para resolver esse impasse, Descartes diz ter a opinião (não certeza ainda na 1ª meditação) de que existe um Deus e levanta a possibilidade de ser Ele enganador: "Ora, quem me poderá assegurar que esse Deus não tenha feito com que não haja nenhuma terra, nenhum céu, nenhum corpo extenso, nenhuma figura, nenhuma grandeza, nenhum lugar, e que, não obstante, eu tenha os sentimentos de todas essas coisas e que tudo isso não me pareça existir de maneira diferente da que vejo?". Tal Deus é considerado bom pelos cristãos, mas mesmo assim permite que certas vezes se engane, de tal forma que é possível pensar que talvez se engane nas coisas mais simples possíveis. Esse argumento não é novo, já o encontramos antes em alguns céticos, como Guilherme de Ockan. Se sou o efeito de uma causa divina, como poderia me enganar? Pois causa e efeito tem de ser da mesma natureza, segundo a causa eficiente. Ockam se insurgiu contra o tomismo, onde Deus cria as coisas que já estavam no seu intelecto por liberdade (contingência), ato de sua infinita vontade. Para Ockam não existe essência universal, pois o universal é abstração do singular. Esse Deus seria onipotente, e por isso cria o princípio da identidade e da não contradição. Mas se faz isso porque quer, nada o impede de criar outras coisas, como a contradição. Deus cria o singular e não o universal. Antes se sermos o todo, somos sujeitos percebendo e significando o mundo de maneira única. A explicação para não estar tudo ligado, seria o fato de que Deus pode aniquilar qualquer singular, sem afetar o geral. Aniquilar significa fazer voltar ao nada.

Descartes fala que se algumas pessoas não acreditarem em um ser tão onipotente assim, devem considerar que enganar é imperfeição, e quanto menos poderoso Deus for, mais chance terá de me enganar. As pessoas atribuíram "ter eu chegado ao estado e ao ser que possuo" :

1. a algum destino ou fatalidade. Esta é uma perspectiva histórica da filosofia , a noção de que as coisas se ligam assim é pertencente aos estóicos, e combatidas no século XVII. Cada coisa, para os estóicos, seria regida por leis naturais e necessárias, pois fazem parte da chama divina e universal. Nossa causa não é livre, mas determinada por outras. A palavra fatalidade vem de factum, que significa fado.

2. ao acaso: posição dos epicuristas, que diziam ser o mundo formado por átomos que se conectam e desconectam ao acaso.

3. por conexão das coisas, ou seja, a potência ordenada de Deus.

Continuando com a suposição de que Deus cria singulares, e não universais, quem poderá garantir que o que se vê é o que existe? Afinal, não há ordem universal.

Por prudência, Descartes resolve desconfiar da existência de um Deus assim. A prudência é uma das virtudes clássicas, e está ligada à moral. Descartes formula nesse trecho uma moral provisória.

No parágrafo onze, Descartes fala da necessidade de lembrar dos resultados de sua meditação. Pois pelo costume crenças e opiniões familiares ganharam um direito sobre ele, o de ocupar seu espírito. É apresentado o risco da heteronomia de pensamento, ao invés de uma autonomia. Para escapar disso, é necessário recordar os resultados da dúvida. O recordar é um lembrar voluntário, um esforço da mente. Já a força do costume, o hábito, é uma segunda natureza, mais falsa que a primeira. Descartes prefere, ao invés dessa heteronomia, um auto-engano que utilizará até seu pré-juízo se transformar em juízo. A meditação, por ser espiritual, tomou um rumo que diferia muito da vida prática, e agora essa vida trata de cobrar suas dívidas. Nesse ponto, é feita distinção entre agir e conhecer. A auto-enganação tem a função de fazer assombroso espectro do Deus enganador se tornar uma hipótese, mudando assim de estatura, passar de opinião forte a vaga hipótese. Fica explícito então o poderio da vontade do sujeito.

A nova hipótese é o gênio maligno, também ardiloso e enganador, um diabrete que influi em nossas sensações, enganando-nos. A diferença entre o Deus Enganador e o gênio maligno é que um age no espírito, e o outro no corpo. Mas Descartes desconfia do seu corpo, das sensações. Nada existe e o corpo também não, assim o gênio maligno também perde importância.

Descartes termina a primeira meditação demonstrando preguiça, um dos sete pecados capitais. É como um escravo que pensa ser livre. Com a meditação interrompeu-se o fluxo das coisas ilusórias, e hipóteses assustadoras foram levantadas na mente do meditante. Mas a segunda natureza soterra esse movimento de interiorização de busca da primeira natureza. Isso lembra os prisioneiros da caverna de Platão, que acreditavam serem livres e estarem vendo tudo o que existe, e um deles se solta em busca da luz, simbolizada pelo Sol. É no Fédon que Platão diz que a luz divina se transforma em matéria sem luz. Para os cristãos, Deus é a luz e a alma pode receber essa luz (lux-luz , lumem-objeto iluminado), que pode ser natural (razão) ou supranatural, concedida pela graça divina (fé). Já para os neoplatônicos, o Uno (incognoscível e eterno), emana luz, o intelecto, da onde saí o inteligível, que emana as coisas. É de se notar que a primeira meditação termina de forma a exigir a segunda.

A afirmação de que o espírito é mais fácil de conhecer do que o corpo foi escandalosa no ponto de vista da tradição filosófica. Essa afirmação inaugura a filosofia moderna. Na tradição filosófica, o espírito era mais digno, mas não mais fácil de se conhecer do que o corpo. A 2ª meditação começa com uma recapitulação da anterior, e passa para um sentimento de angústia. Descartes diz não ser mais capaz de esquecer as dúvidas a que chegara no dia anterior, e se sente como em um abismo. Nesse ponto, há uma parada: ou a nova ciência surgirá, ou o ceticismo estará justificado.

Descartes faz uma analogia entre si próprio e Arquimedes. Arquimedes precisava apenas de um ponto fixo, para que, usando a alavanca, conseguisse mover o mundo de lugar. Descartes procura ao menos uma verdade que seja certa e indubitável. Com a geometrização do espaço e a infinitização do universo, havíamos perdido o centro. Descartes procurava um ponto fixo, ou seja, uma base sólida onde pudesse erguer seu palácio do conhecimento. Pergunta Descartes: "O que poderá, pois, ser considerado verdadeiro? Talvez nenhuma outra coisa a não ser que não há nada de certo". Descartes começa a hesitar, coisa que antes não havia acontecido. Nesse recurso literário, expõe sua dúvida sobre se depender ou não do corpo para existir. Porém, a brecha é aberta, quando ele descobre que para receber a ação do Deus Enganador, precisa ser. Ele não pode deixar de ser enquanto receber a ação do Deus Enganador. Essa é uma primeira afirmação verdadeira: "Eu sou, existo". Ela é verdadeira toda a vez que a concebo em meu espírito. Ou seja, a frase é verdadeira em um sentido atual, não potencial. Ele ainda não demonstrou nada além disso, e deve ter cuidado para não atribuir ao ser outra coisa que não ele mesmo. Assim, para conservar a primeira evidência, é preciso atenção.

Conhecer está ligado a perceber, que está ligado a ver. Esse ver pode ser com os olhos do corpo e com os olhos do espírito. Com os olhos do espírito eu tenho uma intuição intelectual, vejo com certeza, entendo, vejo a coisa na sua totalidade. A mathema acreditava que o espírito podia apreender de uma só vez o objeto em sua inteireza. E quando se vê completamente, se tem a evidência. Já a atenção é a atividade intelectual que busca a evidência, a afirmação de que só conhecemos o que é claro e distinto, e a exigência de que devemos começar por coisas mais simples. Para o juízo não cair em erro, é necessário a atenção. Mas o que é esse "eu que existe"? Esta é uma indagação metafísica. Descartes refuta a concepção clássica de homem por Aristóteles e os tomistas, a de que o homem é um animal racional. Pois perguntando-se o que é racional, cairia-se em questões mais complicadas e indesejáveis no momento.

A primeira evidência veio enquanto o meditante estava pensando, e se torna verdadeira toda vez que em um ato atual, ele a concebe em seu espírito. As coisas vieram conforme as ordens do pensamento, e ele foi quem deu a medida. Descartes diz- e aí ele volta o verbo ao passado- que considerava o corpo uma máquina composta de ossos e carne. A alma seria feita de éter, um corpo sutil, rarefeito, algo como um vento ou uma flâmula tênue. Para Platão, alma podia ser temperante (desejos), irascível (coração) e racional. Para os estóicos, era um sopro sutil. Para Aristóteles, há quatro almas: vegetativa, locomotiva, sensitiva e intelectiva. Descartes fica com o quarto tipo de alma, o pensamento. O pensamento é, para Descartes, ao mesmo tempo alma e espírito. Sob a mira do Ser ardiloso e poderoso que emprega todas a sua indústria a enganar, Descartes diz não poder estar tão certo da natureza das coisas corpóreas. Depois de falar o que não pertence ao seu ser, Descartes dá a resposta para a pergunta "o que sou?", que é: "uma coisa que pensa" (res cogitans). E uma coisa que pensa é uma coisa que concebe, que duvida, que afirma, nega, quer, imagina e que sente.

Nesse ponto interromperei a exposição pois já atingi o objetivo proposto. A certeza do Cogito cartesiano inaugura o sujeito moderno, dando importância fundamental ao ser que pensa, em oposição a um Deus que pode enganar-me. A força do pensamento subjetivo é tal que Descartes chega a duvidar que as pessoas que ele vê andando vestidas na rua não sejam autômatos movidos por mola. Tal afirmação tem um tom solipsista. Foi exposto também como é problematizado o sujeito do conhecimento, que com ordem e medida, procura conhecer as coisas em sua inteireza. Descartes falará então das outras duas substâncias, a extensa, onde se tornou famoso seu exemplo da cera que muda muito mas não deixa de ser extensa, e a divina. Tentará provar que Deus existe e não é mal, mas pelo contrário, ajuda a transpor o abismo entre o sujeito e o objeto.


BIBLIOGRAFIA
1. Anotações da aula da professora Marilena de Souza Chauí
2. Descartes, René. Volume da coleção Os Pensadores, editora Nova
Cultural, São Paulo SP. Livro usados nesse volume: Discurso do método para bem conduzir a razão e procurar a verdade nas ciências e Meditações concernentes à Primeira Filosofia nas quais a existência de Deus e a Distinção Real entre a Alma e o Corpo do homem são demonstradas
3.Cottinghan, John. Dicionário Descartes Editora Zahar
4.Chauí, Marilena Primeira filosofia Artigo sobre filosofia moderna
5. Descartes, René. Regras para a direção do espírito. Edições 70. Portugal, Lisboa.

DEUS ESTA MORTO A CELEBRE AFIRMAÇÃO DE NIETZSCHE

"Deus está morto" ("Gott ist tot" em alemão) é uma frase muito citada do filósofo Friedrich Nietzsche (1844-1900). Aparece pela primeira vez em A gaia ciência, na seção 108 (Novas lutas), na seção 125 (O louco) e uma terceira vez na secção 343 (Sentido da nossa alegria). Uma outra instância da frase, e a principal responsável pela sua popularidade, aparece na principal obra de Nietzsche, Assim falava Zaratustra.
Deus está morto! Deus permanece morto! E quem o matou fomos nós! Como haveremos de nos consolar, nós os algozes dos algozes? O que o mundo possuiu, até agora, de mais sagrado e mais poderoso sucumbiu exangue aos golpes das nossas lâminas. Quem nos limpará desse sangue? Qual a água que nos lavará? Que solenidades de desagravo, que jogos sagrados haveremos de inventar? A grandiosidade deste acto não será demasiada para nós? Não teremos de nos tornar nós próprios deuses, para parecermos apenas dignos dele? Nunca existiu acto mais grandioso, e, quem quer que nasça depois de nós, passará a fazer parte, mercê deste acto, de uma história superior a toda a história até hoje! — NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência, §125.

Interpretação

"Deus está morto" é talvez uma das frases mais mal interpretadas de toda a filosofia. Entendê-la literalmente, como se Deus pudesse estar fisicamente morto, ou como se fosse uma referência à morte de Jesus Cristo na cruz, ou ainda como uma simples declaração de ateísmo são idéias oriundas de uma análise descontextualizada da frase, que se acha profundamente enraizada na obra nietzscheana. O dito anuncia o fim dos fundamentos transcendentais da existência, de Deus como justificativa e fonte de valoração para o mundo, tanto na civilização quanto na vida das pessoas — segundo o filósofo, mesmo que estas não o queiram admitir. Nietzsche não se coloca como o assassino de Deus, como o tom provocador pode dar a entender: o filósofo enfatiza um acontecimento cultural, e diz "fomos nós que o matamos".
A frase não é nem uma exaltação nem uma lamentação, mas uma constatação a partir da qual Nietzsche traçará o seu projeto filosófico de superar Deus e as dicotomias assentes em preconceitos
metafísicos que julgam o nosso mundo — na opinião do filósofo, o único existente — a partir de um outro mundo superior e além deste. A morte de Deus metaforiza o facto de os homens não mais serem capazes de crer numa ordenação cósmica transcendente, o que os levaria a uma rejeição dos valores absolutos e, por fim, à descrença em quaisquer valores. Isso conduziria ao niilismo, que Nietzsche considerava um sintoma de decadência associada ao facto de ainda mantermos uma "sombra", um trono vazio, um lugar reservado ao princípio transcendente agora destruído, que não podemos voltar a ocupar. Para isso ele procurou, com o seu projecto da "transmutação dos valores", reformular os fundamentos dos valores humanos em bases mais profundas do que os ídolos do cristianismo.
Quando o cheiro do cadáver se tornasse inegável, o
relativismo, a negação de qualquer valoração tomaria conta da cultura. Seria tarefa dos verdadeiros filósofos, segundo Nietzsche, estabelecer novos valores em bases naturais e iminentes, evitando que isso aconteça. Assim, a morte de Deus abriria caminho para novas possibilidades humanas. Os homens, não mais procurando vislumbrar uma realidade sobrenatural, poderiam começar a reconhecer o valor deste mundo. Assumir a morte de Deus seria livrar-se dos pesados ídolos do passado e assumir nossa liberdade, tornando-nos nós mesmo deuses como diz o Louco, citando uma das blasfêmias bíblicas. Esse mar aberto de possibilidades seria uma tal responsabilidade que, acreditava Nietzsche, muitos não estariam dispostos a enfrentá-lo. A maioria continuaria a necessitar de regras e de autoridades dizendo o que fazer, como julgar e como ler o mundo.

quinta-feira, 8 de novembro de 2007

SIMULACROS E SIMULAÇÕES

SIMULACROS E SIMULAÇÕES

BAUDRILLARD, Jean. Simulacro e simulação. Lisboa, Relógio D’água,
1991.



Baudrillard é tido como um dos principais teóricos da pós-modernidade. Alguns, inclusive, consideram este professor de sociologia o grande pregador da pós-modernidade. Num primeiro momento, assim como Foucault, Deleuze e Guattari, Baudrillard nunca se considerou pós-moderno. Somente a partir de 1980, Baudrillard admite classificar sua teoria como pós-moderna. Inclusive o termo aparece nos seus escritos. A influência de suas idéias pode ser percebida nas discussões de teoria cultural, teoria da comunicação, arte contemporânea e sociedade atual.

Desde seu primeiro livro, O sistema dos objetos (1968), há certa perspectiva que permeia as obras de Baudrillard. Segundo ele, há certa estrutura que marca a sociedade atual, constituída pelo sujeito observador e desejante que se coloca diante do mundo dos objetos e dos signos. Não é gratuitamente que seu primeiro livro se chama O sistema dos objetos. Dentro desta perspectiva, este primeiro livro buscava abordar os signos e os objetos. Em 1977, Baudrillard lança Esquecer Foucault, com virulenta crítica a Foucault
[1], assim como a Deleuze e Guattari. Esta obra é fundamental no desenvolvimento do pensamento de Baudrillard. A partir deste momento, sua obra assume caráter mais cínico, niilista e a-político.

O livro Simulacros e simulações, de 1981, marca certa ruptura no pensamento de Baudrillard, aprofundando algumas idéias presentes em Esquecer Foucault. Até o início da década de 80, Baudrillard é profundamente marcado pelas teorias marxistas, ainda que sua abordagem seja caracterizada por certa crítica ao marxismo. Na perspectiva de Baudrillard, não importa se as necessidades sejam reais ou verdadeiras, ou se o trabalho seja livre ou alienado. Estes conceitos marxistas ainda se inserem na lógica do capitalismo produtivo. A alternativa revolucionária é a troca simbólica capaz de romper com o utilitarismo, revelando as forças dionisíacas do jogo e da festa. Nesta breve menção ao pensamento de Baudrillard fica patente outra fonte de seu pensamento: a semiótica e a semiologia. Assim como muitos de seus contemporâneos do movimento estudantil de 68, Baudrillard alia marxismo e semiótica/semiologia na sua abordagem, daí a importância dos signos.

Se antes da década de 80, Baudrillard apenas ensaia sua perspectiva pós-moderna, a partir de Simulacro e simulações, os conceitos pós-modernos se tornam claros. A partir deste momento, Baudrillard constitui sua trindade: simulações, implosão e hiper-realidade. Também neste momento, Baudrillard contrasta a modernidade, caracterizada pelo capitalismo produtivo, com a era constituída por simulações e por novas formas de tecnologia, cultura e organização social. Se a modernidade foi a era da produção controlada pela burguesia, a pós-modernidade é a época das simulações e dos signos governados pela cibernética, por modelos e por códigos.

Na obra Simulacros e simulações, parte-se do conceito de implosão de McLuhan para se afirmar que a distinção entre mundo real e simulação (ou imagem) foi implodido. Não há, portanto, fundamento para o mundo real. Segundo Baudrillard, o tempo atual é o deserto do próprio real, pois o simulacro precede o real. Aliás, ele substitui o real, visto este não ser mais possível senão como vestígio. Todos já ouvimos a frase de que a arte imita a vida, especialmente quando identificamos situações do cotidiano num filme, numa novela, numa peça de teatro, num romance, etc. Para Baudrillard, entretanto, ocorre justamente o contrário na sociedade atual. A vida passa a imitar a arte.

No capítulo intitulado China Syndrom, Baudrillard cita certo exemplo que vivenciamos a todo o momento. Neste filme China Syndrom, um canal de TV faz uma reportagem numa usina nuclear. Esta visita acaba por provocar um acidente na usina, deixando todos em pânico. Baudrillard narra, então, que logo após o lançamento do filme, aconteceu um acidente numa usina. O que se observou neste acidente foi que o comportamento das pessoas se assemelhou ao do filme. É curioso observar como, recentemente, quando ocorre alguma catástrofe os jornalistas sempre recuperam algum filme em que é narrado algo parecido. Por ocasião do ataque às torres gêmeas em Nova York, houve inúmeras comparações entre este episódio e o filme Nova York sitiada. Inclusive, alguns jogos eletrônicos também simulam episódios e acabam por se configurar como modelo para quando eles realmente acontecem. Logo após a queda da URSS, foi lançado um jogo de computador no qual o presidente, por razões de saúde, tem de ausentar por um período e ocorre um golpe. Dois anos depois do lançamento deste jogo eletrônico, ocorreu algo parecido. O então presidente da Rússia se retira para sua casa de campo e há tentativa de golpe. Houve também um programa, chamado no Brasil de Platão Médico, que exibia o cotidiano de um hospital. Nos EUA, durante a exibição desta série, os atores foram convidados a dar palestras para os médicos interessados em seguir seu padrão de comportamento. Desta forma, o médico simulado se tornou o modelo para os médicos “reais”. Poderíamos citar aqui inúmeros outros exemplos, mas estes já são suficientes para ilustrar como este elemento faz parte do nosso cotidiano.

O hiper de hiper-realidade é muito mais do que prefixo. A hiper-realidade nos aponta para a queda das barreiras entre real e irreal. Ele nos indica que o real é produzido a partir de um modelo simulado. Logo no início, o autor nos dá o exemplo dos EUA e a Disneylândia. As relações sociais neste mundo de fantasia acabam por se tornar paradigma para a sociedade americana. No fundo, a sociedade americana quer se tornar uma grande Disneylândia. O simulacro se torna modelo. Em poucas palavras, a hiper-realidade é a situação na qual o real é substituído por modelos. O modelo se torna determinante do real, de forma que as fronteiras entre cotidiano e hiper-realidade são apagadas. As simulações se constituem em realidade, se tornam o paradigma da realidade. Baudrillard não afirma que o real seja impossível, apenas que ele é cada vez mais artificial. O real se esvai no arrazoado de imagens e signos. Nas palavras de Baudrillard, “A simulação caracteriza-se por uma precessão do modelo, de todos os modelos sobre o mínimo facto – os modelos já existem antes, a sua circulação, orbital como a da bomba, constitui o verdadeiro campo magnético do acontecimento. Os factos já não têm trajectória própria, nascem na intersecção dos modelos, um único facto pode ser engendrado por todos os modelos ao mesmo tempo” (p.26).

Como o livro foi escrito na década de 80, aparecem muitos exemplos ligados à ameaça nuclear. Neste contexto de ameaça, Baudrillard afirma: “De certo modo como as centrais nucleares: o verdadeiro perigo que elas constituem não é a insegurança, a poluição, a explosão, mas o sistema de segurança máximo que irradia à sua volta, um verniz de controle e de dissuasão que se estende, pouco a pouco, a todo território, verniz técnico, ecológico, econômico, geopolítico” (p.81). Ou seja, o grande problema das usinas é a panacéia que se cria em torno delas, simulando perigo. Entretanto, aqui parece que Baudrillard inverte as coisas, confundindo causa com efeito. Tomemos o exemplo dos recentes ataques ocorridos em São Paulo. Na segunda-feira, o medo foi puro simulacro. A grande parte dos ataques havia acontecido no final de semana. Entretanto, a mídia colocou todos em pânico na segunda-feira, quando a incidência dos ataques foi infinitamente menor. Isso é, na segunda-feira os ataques foram puro simulacro. Entretanto, havia algo que deva subsídio para tal construção. O final de semana havia sido violento. O mesmo ocorre com as usinas nucleares. Há certo perigo com as usinas, os vazamentos realmente consomem as pessoas. Entretanto, há também muito de simulação. Na hiper-realidade a distinção entre política e imagem, informação e entretenimento se confundem. Todos sabemos que na política atual é mais importante a imagem do que propriamente a “substância” política. Neste contexto, em que a imagem se torna mais importante do que a política, o cientista político é substituído pelo “marketeiro”.

Desta maneira, se o capitalismo produtivo era caracterizado pela explosão (expansão de produtos, indústria, ciência, tecnologia, fronteiras, etc), a implosão marca o período contemporâneo. A implosão revela certa entropia que conduz ao desmantelamento de fronteiras, incluindo a do sentido. Baudrillard abre o capítulo Implosão do sentido nos Media com uma frase que resume bem este ponto: “Estamos num universo em que existe cada vez mais informação e cada vez menos sentido” (p.103). Mas como explicar isso? Segundo Baudrillard, “A perda do sentido está diretamente ligada à acção dissolvente, dissuasiva, da informação, dos media e dos mass media” (p.104). A perda do sentido ocorre não por falta, mas por excesso. As massas são bombardeadas, convocadas a votar, a escolher, a participar da vida social, a consumir, a trabalhar, etc. tudo isso gera certa apatia. As massas se tornam ressentidas e entediadas. Com isso, a vida social desaparece, assim como as distinções entre classes, ideologias políticas, formas culturais, etc. Tudo isso é implodido. A descrição de Baudrillard parece nos lançar num mundo vertiginoso, onde as fronteiras tradicionalmente bem demarcadas são implodidas num interminável e indiferenciado fluxo de simulacros.

Para Baudrillard, a pós-modernidade é a resposta ao vazio e à angústia que nos leva à simulação do passado. É a neurótica procura pelos referenciais estáveis que davam substância aos signos
[2]. “Por toda parte se reciclam as faculdades perdidas, ou o corpo perdido, ou a sociabilidade perdida, ou o gosto perdido pela comida. Reinventa-se a penúria, a ascese, a naturalidade selvagem desaparecida: natural food, health good, yoga” (P.22). A partir disso fica mais claro o que Baudrillard entende por simulação. “Disssimular é fingir não ter o que se tem. Simular é fingir ter o que não se tem. O primeiro refere-se a uma presença, o segundo a uma ausência” (p.09).A simulação se torna ainda mais complexa, visto ser não pura e simplesmente fingimento. Aquele que simula uma doença pode começar a sentir certos sintomas desta doença. Do ponto de vista estritamente biológico pode não haver nenhum problema, mas para a psicologia esta pessoa pode ser considerada doente. Aonde pretende chegar Baudrillard com estas distinções? Para ele, a simulação “põe em causa a diferença do ‘verdadeiro’ e do ‘falso’, do ‘real’ e do ‘imaginário’” (p.09-10).

Como este livro é de transição é possível ainda encontrar rastros do engajamento político de Baudrillard. Segundo ele a transgressão simbólica pode nos conduzir à revolução cultural. Segundo o autor, o capitalismo foi o primeiro a se utilizar da redução de tudo a valor, da simulação e da hiper-realidade. Entretanto, hoje ele sente as ameaças destas categorias. (p.33). Como o poder sabe muito bem controlar a situação quando há referenciais fixos, há tentativas de se injetar referenciais em todos os lugares. Isso leva à histeria da produção do real, que marca nossa época. “O que toda uma sociedade procura, ao continuar a produzir e a reproduzir, é ressuscitar o real que lhe escapa. É por isso que esta produção ‘material’ é hoje, ela própria, hiper-real. Ela conserva todas as características do discurso da produção tradicional mas não é mais que a sua refracção desmultiplicada (assim, os hiper-realistas fixam numa verossimilhança alucinante um real de onde fugiu todo o sentido e todo o charme, toda a profundidade e a energia da representação). Assim, em toda a parte o hiper-realismo da simulação traduz-se pela alucinante semelhança do real consigo próprio” (p.34). É tentativa de recuperar a ausência que marca a simulação, concedendo-lhe substrato.

A glorificação dos simulacros – algumas observações críticas
A primeira crítica a ser feita ao texto de Baudrillard é ser por demais unilateral. Baudrillard concebe a realidade somente sob a ótica do signo e do simulacro. Ele percebe simulacros em toda parte. Reconhecemos a relevância de sua abordagem por nos chamar a atenção para este aspecto da sociedade contemporânea, entretanto, ela não pode dar conta de explicar tudo.

Devido à sua unilateralidade, Baudrillard não consegue perceber as continuidades entre modernidade e pós-modernidade. Por exemplo. No capítulo, O fim do panóptico (clara crítica a Foucault), o autor cita o exemplo de certo programa de televisão semelhante os realities shows atuais. Neste programa, realizado ainda na década de 70, o cotidiano de uma família modelo dos EUA é acompanhado por diversas câmeras, dia a dia. Analisando este TV Show, Baudrillard conclui: “Fim do sistema panóptico. O olho da TV já não é a fonte de um olhar absoluto e o ideal do controle já não é o da transparência. Este supõe ainda um espaço objectivo (o da Renascença) e a omnipotência de um olhar despótico. É ainda, se não um sistema de encerramento, pelo menos um sistema de quadriculação. Mais subtil, mas sempre em exterioridade, jogando na oposição do ver e do ser visto, podendo mesmo o ponto focal do panóptico ser cego” (p.42). Agora, já não é você que vê a TV, mas é a TV que vê você. É a inversão do vigiar e punir, com a implosão da distinção entre ativo e passivo. Entretanto, será que é a inversão ou a exacerbação do modelo panóptico? De repente, todos estamos exercendo o vigiar e o punir de um grupo de pessoas convivendo dentro de uma casa. É o espalhamento do panóptico para toda a sociedade. Ao invés de ruptura com a modernidade, é a disseminação do panóptico para toda a sociedade, concedendo a cada um o olhar despótico.

Em segundo lugar, Baudrillard não afirma quais interesses subjazem, mantém e promovem a hiper-realidade. Quais interesses ela atende? Quem sai beneficiado com a simulação e com a hiper-realidade? Qual o sistema econômico que leva a tudo isso? Estas são questões não respondidas por Baudrillard. Antes da década de 80, Baudrillard se preocupava com questões políticas e econômicas. Entretanto, no período posterior tem dado pouca atenção ao assunto. Contra isso, muitos críticos têm se levantado.

A crítica mais incisiva, entretanto, que gostaria de fazer a Baudrillard se refere à metafísica. Na segunda página de seu livro Baudrillard afirma que o mundo da simulação e do simulacro significa a superação da metafísica: “É toda a metafísica que desaparece” (p.08). No entanto, será que as coisas são tão simples assim? Vejamos.

A crítica de Baudrillard à metafísica parece ter ressonâncias nietzschianas. Para Nietzsche, metafísica era sinônimo de platonismo. O platonismo, filosofia que marca todo o Ocidente, criou um mundo ideal que controla, dá direção e horizonte ao mundo aparente. Este mundo inteligível tem mais ser do que o mundo sensível, marcado pelos simulacros. Basta nos lembrarmos da alegoria da caverna. Nela Platão narra os seres humanos presos por correntes dentro de uma caverna, incapazes de se virarem a fim de olhar para fora da caverna. Eles apenas vêem as sombras na parede da caverna (simulacros) e julgam estas imagens como verdadeiras. Entretanto, a verdade do mundo sensível está em outro lugar. A referência dos signos e o ponto estabilizador das imagens estão fora da caverna, no mundo das idéias. Para Baudrillard, superar a metafísica significa demolir este mundo real que há por detrás do mundo aparente. Não há mundo real, apenas simulacros e simulações.

O problema, entretanto, é que Baudrillard simplesmente inverte a lógica metafísica, o que não significa rompimento. A superação do platonismo não pode se dar por essa simples inversão. O que Baudrillard faz nada mais é do que atribuir ao mundo aparente o antigo status do mundo das idéias de Platão. Nietzsche, já havia dito que o mundo verdadeiro se tornou uma fábula. Entretanto a frase não pára aí: “Abolimos o mundo verdadeiro: que nos restou? O aparente, talvez?... Não! Com o mundo verdadeiro abolimos também o mundo aparente”
[3]. Nietzsche não inverte as coisas, mas procura subvertê-las. O que nos resta depois da fabulação do mundo verdadeiro e da dissolução do mundo aparente é assumir a interpretação enquanto constituição do mundo. Este não possui nenhuma estrutura, seja o mundo das idéias de Platão ou mesmo a glorificação dos simulacros. Se os simulacros ainda possuem a dignidade do mundo verdadeiro da metafísica, nenhuma metafísica foi superada.

Este elemento desencandeia alguns problemas do texto de Baudrillard. Grande parte das vezes seu texto é descritivo, revelando o quanto seu texto ainda está preso ao pensamento representacional. Isso significa que Baudrillard pretende descrever de forma acurada como as coisas são no mundo dominado por simulacros. Isto é, escrever um texto referencial para afirmar o fim do referencial. Em outras palavras, seu texto pretende descrever a “realidade” do mundo dominado por simulacros, sem reconhecer que sua abordagem também é simulacro. Em termos mais textuais, não raras vezes aparece o termo “verdade” para mostrar como as coisas são. Em pelo menos duas citações que fizemos de seu texto aparece este aspecto. Por exemplo. “De certo modo como as centrais nucleares: o verdadeiro perigo que elas constituem não é a insegurança, a poluição, a explosão, mas o sistema de segurança máximo que irradia à sua volta, um verniz de controle e de dissuasão que se estende, a pouco e pouco, a todo território, verniz técnico, ecológico, econômico, geopolítico” (p.81). Assim, o simulacro é o verdadeiro. Este aspecto faz com Baudrillard se prenda àquilo que sempre critica: a realidade social. Para o sociólogo, não existe nem realidade, nem o social. Entretanto, a todo o momento o que se procura descrever é a realidade dos simulacros e sua inserção social.

Por fim, é preciso reconhecer o mérito da obra de Baudrillard. Este texto foi escrito no início da década de 80. Muitas observações de Baudrillard que hoje começam a se tornar moeda corrente, neste período ainda eram muito obscuras. A sociedade da comunicação generalizada ainda dava seus primeiros passos. A argúcia na percepção de certos fenômenos revela o olhar atento de Baudrillard. Isso faz com que sua obra, em muitos aspectos, ainda permaneça atual para pensarmos a condição pós-moderna.

Anexo: Religião em Simulacros e simulações
Em Simulacros e simulações, Baudrillard menciona a religião poucas vezes e, em geral, de forma rápida. Neste anexo, reunimos algumas partes em que a religião é mencionada.

Baudrillard relaciona o simulacro com a religião, partindo do debate entre iconoclastas e a teologia do visível (expressa nos múltiplos ícones). Os iconoclastas, ao tentarem apagar os ícones das consciências “deixam entrever, destruidora, aniquiladora, de que no fundo Deus nunca existiu, que nunca existiu nada senão o simulacro e mesmo que o próprio Deus nunca foi senão o seu próprio simulacro – daí vinha a sua raiva em destruir as imagens (...) Mas o seu desespero metafísico provinha da idéia de que as imagens não escondiam absolutamente nada e de que, em suma, não eram imagens mas de facto simulacros perfeitos, para sempre radiantes no sue fascínio próprio” (p.12). Por este motivo, os iconoclastas é que atribuíram o justo valor aos simulacros.

“Toda fé e a boa fé ocidental se empenharam nesta aposta da representação: que um signo possa remeter para a profundidade do sentido, que um signo possa trocar-se por sentido e que alguma coisa sirva de caução a esta troca – Deus, certamente” (p.13). Aqui, segundo Baudrillard, trava-se certa luta. De um lado, a representação acredita que a linguagem nada mais é do que signo que se dirige e se refere a algo além dele. “A simulação parte, ao contrário da utopia, do princípio de equivalência, parte da negação radical do signo como valor, parte do signo como reversão e aniquilamento de toda a referência” (p.13).
* O autor é bacharel em teologia pela Escola Superior de teologia do Instituto Concórdia de São Paulo (EST-ICSP) e em História pela Universidade de São Paulo (USP). Mestre e doutorando em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (UMESP). Pesquisador CNPq para a área de Ciências da Religião.
[1] A principal crítica de Baudrillard a Focault é que sua abordagem ainda está presa à modernidade, se tornando obsoleta para compreender uma época determinada pela simulação. As teorias clássicas não conseguem explicar este novo contexto. Por se prender a teorias clássicas, Foucault não explicar os mecanismos contemporâneos de poder: mídia, consumo, moda, etc. O problema da crítica de Baudrillard é ser unilateral, como se os sistemas de poder incluíssem tudo aquilo que ele menciona e que Foucault se esqueceu. Não há como negar a relevância daquilo que Foucault aponta em sua obra. Nem tudo é signo, simulacro e imagem.
[2] Baudrillard trata deste tema várias vezes no decorrer do livro. De forma especial no capítulo intitulado A história: um cenário retro.
[3] NIETZSCHE, F. O crepúsculo dos ídolos. “Como o mundo verdadeiro se tornou uma fábula”. P.32

quarta-feira, 31 de outubro de 2007

ANALISANDO FOUCAULT (PARTE 03): O HOMEM ESTÁ MORTO?

O homem está morto?

L'homme est-il mort? (entrevista com C. Bonnefoy), Arts et Loisirs, no 38,
15-21, junho de 1966, pp. 8-9. Traduzido a partir de FOUCAULT, Michel.
Dits et Écrits. Paris: Gallimard, 1994, vol. I., p. 540-544, por Marcio Luiz
Miotto. Revisão de wanderson flor do nascimento.
[... primeiro pedimos a Michel Foucault que definisse o lugar exato e a
significação do humanismo em nossa cultura. ]

- Cremos que o humanismo é uma noção muito antiga que remonta a Montaigne e bem mais além. Ora, a palavra "humanismo" não existe nos Ensaios. Na verdade, com essa tentação da ilusão retrospectiva à qual sucumbimos muito freqüentemente, imaginamos de boa vontade que o humanismo sempre foi a grande constante da cultura ocidental. Assim, o que distinguiria esta cultura das outras, das culturas orientais ou islâmicas, por exemplo, seria o humanismo. Comovemo-nos quando reconhecemos vestígios deste humanismo noutro lugar, num autor chinês ou árabe, e temos então a impressão de nos comunicar com a universalidade do tipo humano. Ora, não somente o humanismo não existe nas outras culturas, mas está provavelmente na nossa cultura na ordem da miragem. No ensino secundário, aprendemos que o século XVI foi a era do humanismo, que o classicismo desenvolveu os grandes temas da natureza humana, que o século XVIII criou as ciências positivas e que chegamos enfim a conhecer o homem de maneira positiva, científica e racional com a biologia, a psicologia e a sociologia. Imaginamos que, ao mesmo tempo, o humanismo tem sido a grande força que animou o nosso desenvolvimento histórico e que é finalmente a recompensa desse desenvolvimento, resumidamente, que é o princípio e o fim. O que nos admira na nossa cultura atual, é que ela possa ter a preocupação com o humano. E se falamos de barbárie contemporânea, é na medida em que as máquinas, ou certas instituições, nos aparecem como não humanas. Tudo isso é da ordem da ilusão. Primeiramente, o movimento humanista data do fim século XIX. Em segundo lugar, quando se olha ligeiramente as culturas dos séculos XVI, XVII e XVIII, percebe-se que o homem não tem literalmente nenhum lugar. A cultura é então ocupada por Deus, pelo mundo, pela semelhança das coisas, pelas leis do espaço, e certamente também pelo corpo, pelas paixões, pela imaginação. Mas o homem mesmo é completamente ausente. Em As Palavras e as Coisas, quis mostrar de quais peças e quais pedaços o homem foi composto no fim século XVIII e início do XIX. Tentei caracterizar a modernidade dessa figura, e o que me pareceu importante era mostrar isso: não é tanto porque se teve um cuidado moral com o ser humano que se teve a idéia de conhecê-lo cientificamente, mas é pelo contrário porque construiu-se o ser humano como objeto de um saber possível que em seguida desenvolveram-se todos os temas morais do humanismo contemporâneo, temas que são encontrados nos marxismos frouxos, em Saint-Exupéry e Camus, em Teilhard Chardin, resumidamente, em todas essas figuras pálidas da nossa cultura. - Você falou aqui de humanismos frouxos. Mas como você situa algumas formas mais sérias de humanismo, o humanismo de Sartre, por exemplo ? - Se afastamos as formas fáceis de humanismo que representam Teilhard e Camus, o problema de Sartre aparece como completamente diferente. Aproximadamente, pode-se dizer isso: o humanismo, a antropologia e o pensamento dialético estão ligados. O que ignora o homem, é a razão analítica contemporânea que se viu nascer com Russell, e que aparece em Lévi-Strauss e nos lingüistas. Esta razão analítica é incompatível com o humanismo, enquanto que a própria dialética se nomeia acessoriamente de humanismo. Ela se nomeia por várias razões: porque é uma filosofia da história, porque é uma filosofia da prática humana, porque é uma filosofia da alienação e da reconciliação. Por todas essas razões e porque continua, no fundo, uma filosofia do retorno a si mesmo, a dialética promete em certa medida ao ser humano que ele se tornará um homem autêntico e verdadeiro. Ela promete o homem ao homem e, nessa medida, não é dissociável de uma moral humanista. Neste sentido, os grandes responsáveis do humanismo contemporâneo, são evidentemente Hegel e Marx. Ora, parece-me que escrevendo a Crítica da razão dialética, Sartre pôs em certa medida um ponto final, ele fechou novamente o parêntese sobre todo este episódio da nossa cultura que começa com Hegel. Ele fez tudo o que pôde para integrar a cultura contemporânea, isto é, as aquisições da psicanálise, da economia política, da história, da sociologia, à dialética. Mas é característico que ele não poderia deixar cair tudo o que é da competência da razão analítica e que faz profundamente parte da cultura contemporânea: lógica, teoria da informação, lingüística, formalismo. A Crítica da razão dialética é o magnífico e patético esforço de um homem século XIX para pensar o século XX. Neste sentido, Sartre é o último hegeliano, e eu diria mesmo o último marxista. - Ao humanismo sucederá então uma cultura não dialética. Como você a concebe e o que se pode dizer dela agora? - Esta cultura não dialética que está a caminho de se formar é ainda muito balbuciante por diversas razões. Primeiro, porque tem aparecido espontaneamente em regiões extremamente diferentes. Ela não tem lugar privilegiado. Também não se apresentou, de entrada, como uma inversão total. Ela começou com Nietzsche quando ele mostrou que a morte de Deus não era o aparecimento, mas o desaparecimento do homem, que o homem e Deus tinham estranhos parentescos, que eram ao mesmo tempo irmãos gêmeos e pais e filhos um do outro, que Deus estando morto, o homem não poderia não desaparecer, ao mesmo tempo, deixando atrás de si uma monstruosidade. Ela apareceu igualmente em Heidegger, quando tentou retomar a abordagem fundamental do ser em um retorno à origem grega. Apareceu igualmente em Russell, quando fez a crítica lógica da filosofia, em Wittgenstein, quando colocou o problema das relações entre lógica e linguagem, nos lingüistas, e nos sociólogos como Lévi-Strauss. Resumidamente, para nós mesmos atualmente, as manifestações da razão analítica ainda são dispersas. É aqui que se apresenta a nós uma tentação perigosa, o retorno puro e simples ao século XVIII, tentação que ilustra bem o interesse atual pelo século XVIII. Mas não se pode ter um tal retorno. Não refaremos mais a Enciclopédia ou o Tratado das sensações de Condillac[1]. - Como evitar essa tentação ? - É necessário tentar descobrir a forma própria e absolutamente contemporânea desse pensamento não dialético. A razão analítica século XVII era caracterizada essencialmente por sua referência à natureza; a razão dialética do século XIX desenvolveu-se sobretudo em referência à existência, ou seja, ao problema das relações do indivíduo à sociedade, da consciência à história, da práxis à vida, do sentido ao sem sentido, do vivo ao inerte. Parece-me que o pensamento não dialético que se constitui agora não põe em jogo a natureza ou a existência, mas isso que é o saber. Seu objeto próprio será o saber, de tal modo que esse pensamento esteja em posição segunda em relação ao conjunto, à rede geral dos nossos conhecimentos. Ele terá que se interrogar sobre a relação que pode haver, por um lado, entre os diferentes domínios do saber e, por outro lado, entre saber e não-saber. Não se trata de uma empresa enciclopédica. Primeiramente, a Enciclopédia acumulava os conhecimentos e fazia sua justaposição. O pensamento atual deve definir isomorfismos entre os conhecimentos. Em segundo lugar, a Enciclopédia tinha por tarefa de expulsar o não-saber em benefício do saber, das luzes. A nós, temos a compreender positivamente a relação constante que existe entre o não-saber e o saber, porque um não suprime o outro; eles estão em relação constante, apoiam-se um no outro e podem ser compreendidos apenas um através do outro. É por isso que a filosofia passa atualmente por uma espécie de crise de austeridade. É menos sedutor falar do saber e dos seus isomorfismos que da existência e o seu destino, menos consolador falar das relações entre saber e não-saber que falar da reconciliação do homem consigo mesmo numa iluminação total. Mas, depois de tudo, o papel da filosofia não é forçosamente o de adocicar a existência dos homens e prometer-lhes algo como uma felicidade. - Você fala de literatura. Em As Palavras e as Coisas, na margem da arqueologia das ciências humanas, mas no mesmo movimento de pensamento, você esboça, a propósito de Dom Quixote e Sade sobretudo, isso que poderia ser uma abordagem nova da história literária. Qual deveria ser esta abordagem? - A literatura pertence à mesma trama que todas as outras formas culturais, a todas as outras manifestações do pensamento de uma época. Disso nós sabemos, mas o traduzimos comumente em termos de influências, de mentalidade coletiva, etc. Ora, creio que a maneira mesma de utilizar a linguagem numa cultura dada em um momento dado está ligada intimamente a todas as outras formas de pensamento. Pode-se perfeitamente compreender em um só movimento a literatura clássica e a filosofia de Leibniz, a história natural de Lineu, e a gramática de Port-Royal. Parece-me da mesma maneira que a literatura atual faz parte desse mesmo pensamento não dialético que caracteriza a filosofia. -Como assim? - À partir de Igitur[2], a experiência de Mallarmé (que era contemporânea de Nietzsche) mostra bem como o jogo próprio e autônomo da linguagem vem se alojar precisamente onde o homem acaba de desaparecer. Depois, pode-se dizer que a literatura é o lugar onde o homem não cessa de desaparecer em proveito da linguagem. Onde "isso fala", o homem não existe mais. Desse desaparecimento do homem em benefício da linguagem, obras tão diferentes como as de Robbe-Grillet e de Malcolm Lowry, de Borges e Blanchot o testemunham. Toda a literatura está em uma relação com a linguagem que é no fundo a que o pensamento mantém com o saber. A linguagem diz o saber não sabido da literatura.
- As Palavras e as Coisas é aberto com uma descrição de As Meninas de Vélasquez, que se apresenta como o exemplo perfeito da idéia de representação no pensamento clássico. Se você fosse escolher um quadro contemporâneo para ilustrar da mesma maneira o pensamento não dialético de hoje, qual você escolheria? - Parece-me que é a pintura de Klee que representa melhor, em relação ao nosso século, o que pôde ser Vélasquez em relação ao seu. Na medida em que Klee faz aparecer em forma visível todos os gestos, atos, grafismos, vestígios, lineamentos, superfícies que podem constituir a pintura, ele faz o ato mesmo de pintar o saber manifesto e cintilante da própria pintura. Sua pintura não é de arte bruta, mas uma pintura re-significada pelo saber aos seus elementos mais fundamentais. E estes elementos, aparentemente os mais simples e os mais espontâneos, os mesmos que não apareciam e que pareciam não dever jamais aparecer, são os que Klee espalha sobre a superfície do quadro. As Meninas representava todos os elementos da representação, o pintor, os modelos, o pincel, a tela, a imagem no espelho, elas decompunham a pintura mesma nos elementos que faziam uma representação. Já a pintura de Klee compõe e decompõe a pintura nos seus elementos que, por serem simples, não são menos suportados, assombrados, habitados pelo saber da pintura.

ANALISANDO Foucault (PARTE 02): a ética e a obra


Foucault: a ética e a obra*


Um filósofo apesar de si
Não estou convencido de que Foucault queria sempre ser visto como filósofo. Em uma conversa com geógrafos marxistas, ocorrida em 1976, Foucault declarava: "em todo caso, a filosofia, a partir de Descartes, sempre esteve relacionada, no ocidente, com o problema do conhecimento. Não se pode iludir-se... E por mais que se diga que não sou um filósofo, o certo é que me ocupo com a verdade e, apesar de tudo, sou filósofo"[2]. Podemos, então, perguntar: será Foucault um filósofo, apesar dele?
Creio que esse desejo de não ser chamado de filósofo, de guardar esta distância a respeito de si mesmo como filósofo, formava parte de sua prática de pensamento. Isso equivale a dizer que sua relação com a "tradição" não era uma relação de identificação, mas era uma questão aberta, uma questão de prática. Foucault não concebia seu próprio trabalho e nem o de seus predecessores como um todo homogêneo com bordas definitivas ou acabadas, ao contrário, ele investigava as rupturas, as fissuras, as contingências e as re-elaborações no que se apresenta como tradição. O "problema do conhecimento" não se delineia nunca da mesma maneira, e as diversas maneiras de propor este problema têm, elas mesmas, uma história. Trata-se, pois, menos de dar uma resposta definitiva a esta questão que de reinventá-la constantemente. Como disse Blanchot, Foucault era sempre "um homem em marcha".
[3]
A diversidade de "nós", o que estamos discutindo juntos aqui, indica bem a diversidade das relações entre Foucault e a filosofia. Nós, que temos leituras diferentes não só de Foucault, mas também da filosofia. Michel Foucault filósofo não é um só. Mas, quem sabe esta diversidade resulte, já ela mesma, de uma prática filosófica de fio duplo: por um lado, uma relação com aquilo que se dá como "filosófico" e, por outro, com o que não é ou o que não é ainda.
Prática 1: Não supor nem construir uma história geral da "filosofia ocidental", nem tratar de encontrar um lugar para ela. Partir, antes, da idéia de que a tradição não é monolítica e que o mapa das maneiras de pensar é algo que se deve refazer permanentemente. Questionar os esquemas gerais de sua história, dispensá-la, abri-la a outras questões. "Às pessoas que gosto prefiro utilizar... deformar, fazê-las gemer e protestar."
[4]
Prática 2: Sair fora da filosofia, para dizê-lo com as palavras de Deleuze, por a filosofia à prova com as questões que parecem estranhas ou exteriores a ela. Fazer da arte de pensar, uma arte de delimitar novos problemas, ao redor dos quais, se formem conjuntos que não sejam anteriores a eles.
De maneira que, conforme a prática 1 (em suas observações sobre os começos da filosofia contemporânea na França na década de 1930), Foucault distinguia uma filosofia da racionalidade formal de uma filosofia da consciência subjetiva,
[5] a tradição de Cavaillès e a tradição de Sartre. Impressionava-o especialmente o fato de que Cavaillès, que havia dado sua vida à Resistência, houvesse encontrado o compromisso bastante mais simples que os filósofos do compromisso.
Para os filósofos de fala inglesa, habituados a aceitar a crítica de Frege ao psicologismo de Husserl e sua radicalização wittgensteiniana, semelhante distinção poderia parecer trivial. Desde 1935, Cavaillès se interessou por Wittgenstein, Frege e Carnap e, repudiando a filosofia da consciência, estudou os fundamentos da matemática e a teoria dos conjuntos. Os filósofos de fala inglesa não podiam, pois, senão admirar o fato de que Foucault havia tomado o partido de Cavaillès contra Sartre e que havia tratado de sair-se da fenomenologia.
Em troca, esses mesmos filósofos se inteiraram, com assombro, pelos escritos de Foucault da década de 1960 de que a fenomenologia e o positivismo, apesar de seu antagonismo, bem claro, derivam de um fundo "arqueológico" comum; e, ao menos, o que se pode dizer é que se surpreenderam com pela bifurcação descrita em As palavras e as coisas onde o "ser da linguagem" conduz, por um lado Russell e, por outro Freud.
[6]
Como se sabe, Foucault propôs novas leituras de Freud e de Nietzsche: ninguém antes dele havia situado o acontecimento central do pensamento de Freud em sua ruptura com a teoria da degeneração. Ninguém antes dele havia lido Nietzsche em relação com a tradição Bachelard-Canguilhem, com a "nova história" dos Anales, com a questão da ideologia nas lutas da década de 1960 ou também com a história da loucura. Sem embargo, Foucault não era um "nietzscheano"; para ela tratava-se, antes, de reler Nietzsche partindo destas novas questões e não só partindo das questões da década de 1930. Em suma, Foucault queria afrouxar as fronteiras que segmentavam a inteligência filosófica ao introduzir novas questões e ao voltar a pensar aquelas que a história nos tem legado.
Conforme a prática 2, Foucault encontrou essas novas questões em campos tradicionalmente exteriores à filosofia, nos quais os métodos de tratar aos loucos pertencem à história da razão e a arte de construir edifícios pertence à história da ética. Como escrever ao mesmo tempo aos presos e aos filósofos? Em 1975, Foucault explicava: "Para mim, Nietzsche, Bataille, Blanchot, Klossowski representaram maneiras de sair da filosofia", de fazer "permeável e, por tanto, irrisória a fronteira entre o filosófico e o não filosófico".
[7] Porém, para ele, o exterior da filosofia não estava tão somente constituído pelo discurso "literário", mas compreendia, assim mesmo, a medicina do desvio no séc. XIX, assim como a ciência da polícia do séc. XVIII. John Searle, que queria transcrever a arqueologia das enunciações em uma teoria dos speech acts, não contava que Foucault considerasse que a masturbação podia ser objeto de um interesse filosófico? De maneira que, precisamente em seus "ensaios" para abrir a filosofia ao exterior, diria eu que Foucault era filósofo, uma classe de filósofo apesar dele mesmo.

O ethos da filosofia
Em seu prefácio a O uso dos prazeres, Foucault tratou de caracterizar a atitude que tinha a respeito de si mesmo como filósofo e a respeito das tradições filosóficas considerando-as como um ethos, uma maneira de ser filósofo. Sustenta, ali, que o discurso filosófico é sempre ridículo quando quer estabelecer-se como meta-disciplina que fixa as fronteiras legítimas e que ministra a unidade de todas as outras disciplinas. "O que está vivo" na filosofia são antes as tentativas de modificá-la em relação com o que parece estranho à filosofia.
De forma que a obra de Foucault não se desenvolve como uma teoria ou um sistema, está direcionada por periódicas tentativas de reelaboração no que se trata de "de pensar de outro modo o que já se pensava e de perceber o que se tem feito de uma perspectiva diferente e sob uma luz mais clara".
[8] A relação consigo mesmo que se transluz em sua obra, teria, pois, a forma de um exercício pelo qual se chega a ser o que se é ao desprender-se de si mesmo. Aqueles cujo ethos se assimilam a este desprendimento de si, diz Foucault, vivem em um "planeta diferente" daqueles que buscam um ponto fixo de certeza, um caminho autêntico ou uma decisão autêntica. Por isso, na história da filosofia, Foucault não se ata a nenhuma tradição ou a um "nós", mas busca acontecimentos, essa classe de acontecimentos dos quais já não se recobra nunca e que nos transformam sempre. É esta concepção de relação com o si mesmo, como ethos ou como maneira de ser filósofo, que está em jogo na tentativa de Foucault que aponta a reconsiderar as tradições que chamamos éticas.

A ética não é uma moral
A tradição da filosofia ética não nos é dada como um todo unificado. Até o que chamamos de moral judáico-cristã se formou em virtude de uma espécie de collage de fontes pagãs. Múltiplas mudanças afetaram não só os códigos que regulam a conduta, mas a concepção mesma de ética, suas questões centrais, o que a ética supõe verdadeiro sobre nós e as classes de relações que ela supostamente tem com a religião, com a ciência, com a política e com o direito.
Foucault acreditava que aquilo que não se havia estudado suficientemente ou considerado suficientemente na história das origens e das transformações da ética eram as práticas formadoras dos modos de ser. Convinha, então, estudar a história, não da moral, mas da ética. Esse é um tema recorrente em toda a obra de Foucault. Em As palavras e as coisas, Foucault se perguntava se a filosofia podia, ainda, assegurar os códigos morais à maneira das antigas cosmologias (como uma teoria da república, dos objetos políticos ou cívicos): "No caso do pensamento moderno, não há moral possível... o pensamento é em si uma ação, um ato perigoso".
[9]
Esta relação entre pensamento e modo de ser ocupava o centro de seu estudo sobre o tema antropológico na filosofia crítica de Kant. É igualmente esta a questão que orientou sua tentativa de analisar a penalidade, partindo das novas técnicas de "governo" dos indivíduos, técnicas que fizeram da criminalidade tanto um objeto de saber como um modo de ser. Foucault se perguntava se o exercício de poder efetivo não se ocultava sob a ordem jurídica tradicional. Foucault trata de analisar a constituição histórica e material dos sujeitos. No lugar de conceber o sujeito partindo se sua condição política, ele tratou de por no quadro de juízos essa condição e encarar a "produção" do ser, até dos indivíduos.
De maneira que seu modo de conceber a distinção entre ética e moral, difere da distinção neokantiana entre Moralität e Sittlichkeit, oposição sobre a qual se construiu "certo discurso filosófico da modernidade". Pois, para Foucault, não se tratava de incorporar-se em uma bela totalidade natural ou essencial, nem de elevar-se a uma república transcendental racional e normativa. Tampouco se tratava de derivar a solidariedade da racionalidade, nem de recuperar um sentimento perdido da comunidade no seio de uma razão moderna. Tratava-se, antes, de estudar as práticas de si em sua esfera própria e, a partir dali, introduzir a questão do lugar das ditas práticas em uma dada sociedade. Neste sentido, as práticas de si de Foucault se aproximam das formas de vida ordinárias de Wittgenstein, nas quais aquilo que se dá como subjetivo procede de práticas comuns (públicas) transformáveis.
Foucault não se perguntava, então, como as ditas práticas eram veículos das decisões de uma cultura, mas perguntava-se como se poderia explicar que uma cultura lhe havia dado uma determinada posição particular. E porque queria recolocar a questão do ser ético do indivíduo, censurou no Cuidado de Si a idéia vaga do individualismo, invocada para explicar em diferentes épocas fenômenos diversos.
[10] Diz Foucault que convém distinguir as práticas de si, que tomam o indivíduo como objeto de saber e de ação (como no ascetismo cristão), o valor que se atribui ao indivíduo em certos grupos dos quais é membro (como na aristocracia militar) e o valor atribuído à vida privada ou familiar no seio da burguesia do séc. XIX. Foucault também queria distinguir a liberdade individual entre os gregos e a "chatice mais ou menos derivada de Hegel, segundo a qual a liberdade do indivíduo não tem nenhuma importância frente a nobre totalidade da República".[11]
Conceber a ética desde o ponto de vista das práticas de si, permitiu a Foucault um enfoque histórico diferente do postulado pelo pensamento idealista romântico, no qual a constituição do indivíduo passa desde a vontade agostiniana à idéia da vida como obra de arte (descrita por Burckhardt) no Renascimento, para passar logo do cogito cartesiano ao "dandysmo" de Beaudelaire e a confissão analítica. Por o acento na ética e não na moral significava propor a questões das práticas formadoras do indivíduo na relação com o saber, com a política e com o direito modernos.

O pensamento como ética
Se admitimos, pelo menos por hipótese histórica, a distinção entre ética e moral, podemos aplicá-la ao pensamento do próprio Foucault? Mais precisamente, pode-se conceber sua própria prática de pensamento segundo os quatro elementos que Foucault isolou quando se dedicou a estudar a ética como prática de si mesmo?
1. A substância. "O sujeito não é uma substância. É uma forma e essa forma não é sempre, nem em todas partes, idênticas a si mesma..., o que me interessa é precisamente a constituição histórica dessas formas diferentes do sujeito em relação com o jogo da verdade".
[12]
Nesta prática, o que há de ser transformado é a evidência das formas em virtude das quais o sujeito pensa em identificar-se com a verdade; não é a natureza do sujeito o que está em jogo, mas é sua "segunda natureza", não o que está dado, mas aquilo que deixa ao sujeito a possibilidade de dar-se. A substância é o que, no ser do sujeito, está aberto a uma transformação histórica.
2. O modo de subjetivação: é o convite a uma liberdade prática, o que incita a esta transformação. A possibilidade de dar um "novo impulso, o mais vasto possível, a obra sempre inacabada da liberdade".
[13] É a possibilidade de fazer da liberdade uma questão prática e não simplesmente formal, uma liberdade, não dos atos, das intenções ou do desejo, mas a liberdade de escolher um modo de ser.
3. O trabalho ético: os meios de transformação serão os de uma análise crítica que reconstitua as formas do sujeitos em "singularidades transformáveis".
[14] Trata-se de determinar precisamente contra que devemos lutar para liberar-nos e, acima de tudo, para liberar-nos de nós mesmos. Esta é a análise da problematização das "evidências em que se apoiam nosso saber, nosso consentimento, nossas práticas"[15] do qual deriva sempre um "nós necessariamente temporário".[16]
4. O telos: o objetivo desta transformação aberta é a pratica de dizer a verdade, que uma sociedade não pode nem regular nem fazer calar, é a beleza de um traço de si mesmo, e uma atitude crítica a respeito do que nos ocorre e "um desafio a todo fenômeno de dominação".[17]
O trabalho de Foucault, na medida em que todo trabalho filosófico implica um exercício de si mesmo, isto é, uma ética, poderia, pois, resumir-se da seguinte maneira: em nome de uma liberdade prática, dentro daquilo que se dá como formas de experiências possíveis, desenvolver uma análise crítica nominalista como forma de resistência à dominação.

As problematizações
Em seu prefácio a Os usos dos prazeres, Foucault queria, já o dissemos, reconsiderar suas investigações anteriores sob outra luz, a das problematizações. Há uma história do pensamento porque existe uma história dos problemas específicos que o pensamento teve de enfrentar. Que é aquilo que, nas experiências da criminalidade, da enfermidade, da loucura ou da sexualidade se dava de maneira tão problemática que tais experiências chegavam a ser algo que podia e devia ser pensado?
A história foucaultiana da ética não é uma história dos princípios nem de seu modo de legitimação, mas uma história das maneiras de responder a problemas específicos ou singulares. Como se conceberam os obstáculos que se tem de superar para ser bom ou para fazer o que se deve fazer? Como se tem raciocinado o que tem de fazer atendendo ao que se pensa como sendo o mal ou o erro? E mais precisamente, como, partindo de uma análise das problematizações, se pode reconsiderar a tarefa do pensamento em relação com os saberes, com as estratégias da ação [do fazer], com o direito ou com a política?
1. O saber-poder. Como os problemas ou os perigos específicos do si e da sociedade tem chegado a ser objetos de um saber e de uma estratégia possíveis? Essa é a pergunta que formulam as análises de Foucault sobre os sistemas de pensamento nos quais o grande metaconceito é o de "normalidade", uma normalidade que estaria ausente na problematização dos prazeres gregos e que seria específico do racismo "em sua forma moderna, estatal, biologizante".
[18] Como as antigas práticas de si mesmo foram dominadas por este dispositivo normalizador?
2. O direito: Como novos problemas, por exemplo, o seguro contra acidentes, tem chegado a ser o objeto não só de uma nova legislação, mas uma nova maneira de conceber o direito? Há que analisar o direito naqueles pontos em que sua aplicação apresenta problemas. Há que se fazer a história dos estilos do raciocínio jurídico que determinam que classe de objetos podem cair em uma jurisdição que disponha deles. Este é o nominalismo crítico jurídico que propõe François Ewald: não uma filosofia da essência ou da natureza do direito, mas uma história ou das problematizações em virtude dos quais se tem construído uma "experiência jurídica" singular.
3. A política: De que maneira e através de que concepção certos acontecimentos problemáticos se fazem "políticos". Por exemplo, esse acontecimento cujo nome é uma data, 1968.
Para Foucault, a política não é constitutiva das problematizações, pelo contrário, são as problematizações, as que questionam a política e transformam sua concepção. Neste sentido, trata-se menos de achar soluções definitivas aos problemas, do que de saber fazer-los entrar no que se dá como o campo político.
Assim, o declara a questão introduzida por sua análise das problematizações do estado providente-guerreiro (the welfare-warfare state). Como uma nova problematização da vida e da morte, uma nova maneira de governar-se mudaram, não só o funcionamento, mas também a concepção mesma do estado? Como o pensamento "liberal" (as categorias de sociedade civil e estado) surgiu como modo de conceber esta nova biopolítica e como esta, por sua vez, foi problematizada? "Minhas maneiras de encarar as questões políticas é da ordem da problematização, o qual implica no desenvolvimento de uma esfera de ações, de práticas e de pensamento que, segundo me parece, propõem problemas para a política".
[19]
Porém, a análise destes perigos é ela mesma perigosa. Com efeito, essa análise se realiza em situações que escapam ao raciocínio dedutivo-normativo. Por exemplo, quando se vê que há algo que fazer sem que se saiba ainda o que é. Então se abre um espaço, não de dedução, mas de análise e de questionamento, espaço no qual se trata de determinar um perigo que falta, ainda, identificar e ante o qual, se haverá de reagir. A "decisão ético-política" consiste em "determinar qual é o verdadeiro perigo". "Quisera fazer a genealogia dos problemas, das problemáticas. Não quero dizer que tudo está mal, mas digo que tudo é perigoso, o que não é o mesmo. Se tudo é perigoso, então sempre temos algo a fazer".[20]

As possibilidades
A filosofia de Foucault versa sobre o que se pode pensar e o que se pode mudar no que se pensa. O nexo entre o possível e o pensável se remonta a Kant. Foucault quis introduzir o acontecimento ou o sucesso da filosofia crítica e arriscar uma história crítica do pensamento. Pois se a experiência é possível pelas categorias e se as categorias mudam, logo as possibilidades mudam, igualmente.
A tarefa da crítica se converte, pois, na tarefa de inserir os acontecimentos no que se dá como evidência, esses acontecimentos que fazem concebíveis as coisas. Daí que em Arqueologia do Saber, Foucault fale de um a priori histórico, um a priori, não das fronteiras legítimas, mas das possibilidades históricas da experiência. Para Foucault, como para Kant, a liberdade não é uma possibilidade ética entre outras; é a possibilidade mesma da ética. "A ética é a forma deliberada que toma a liberdade".
[21] Sem embargo, contrariamente a Kant, para Foucault, esta liberdade não é supra-sensível, mas histórica. Não procede de uma república racional de sujeitos autônomos, mas procede de um questionamento incessante dos fatos históricos da identidade. Foucault queria fazer uma história, não só do que é verdadeiro ou falso, mas do que pode sê-lo, não do que se tem de fazer, mas do que se pode fazer; não das maneiras de viver, mas das possibilidades de vida. Na perspectiva das possibilidades históricas do saber, da ação e da identidade subjetiva, o saber se delimita, segundo Foucault, pela ciência, o poder pela política e a ética pela moral; e nesta perspectiva das relações entre os saberes, os poderes e os modos de ser nunca estão dados, mas sempre teremos que buscá-los, nunca são essenciais ou necessários, mas sempre são sempre históricos e transformáveis.
Ao historiar a questão crítica, Foucault descobriu uma espécie de impossibilidade que é, não lógica, mas histórica, a impossibilidade não de um círculo quadrado ou de um deus inexistente, mas a impossibilidade do que já não é ou do que ainda não é, ainda que seja possível pensá-lo. Não o que tem sentido, mas o que ainda não tem ou já não o tem mais. É esta coação ou esta exclusão histórica o que o trabalho do pensamento deve fazer ver. Até é lícito pensar que a impossibilidade em questão já estava em gérmen no que Foucault chamava "a ausência de obra" na História da Loucura.
Porém, mais profundamente, o trabalho crítico de Foucault relativo ao campo das possibilidades históricas singulares abre novas possibilidades filosóficas e esboça uma nova maneira de conceber a relação entre filosofia e história, de encarar as relações entre ensaios filosóficos e maneiras de ser; em suma, uma nova maneira de fazer filosofia.
* Este texto foi apresentado no Colóquio RENCONTRE INTERNATIONALE. Michel Foucault Philosophe - Paris, 9, 10, 11, janvier. Paris, Seuil, 1989. (Tradução de Wanderson Flor do Nascimento)
[1] John Rajcham é Professor de Filosofia do Massachussets Institute of Technology – New York University
[2] "Question à Michel Foucault", Hérodote, n. I, janeiro de 1976, p. 74.
[3] Foucault tel que je l'imagine, Montpellier, Fata Morgana, 1986, p. 17.
[4] "Quel corps?" traduzido do inglês, Power and Knowledge, pp. 53-54.
[5] "La vie: l'experiénce et la science", Revue de métaphysique et de la morale, janeiro de 1985.
[6] Les Mots et les Choses. Paris: Gallimard, 1966, p. 312.
[7] "Passe-frontières de la philosophie", Paris: Le monde, 6 de setembro de 1986.
[8] L' usage des plaisirs. Paris: Gallimard, 1984, p. 17.
[9] Les Mots et les Choses, p. 339.
[10] Le Souci de soi, Paris: Gallimard, 1984, p. 56.
[11] "L'ethique du souci de soi comme un pratique de la liberté", Concórdia: Internationale Zeitschrift für Philosophie, n. 6, 1984.
[12] Ibid.
[13] "What is Enlightenment?, Foucault Reader, New York, Pantheón, 1984, p. 46.
[14] "Première préface à L'usage des plaisirs", The Foucault Reader, p. 334.
[15] L'impossible prison. Paris: Ed. du Seuil, 1980, p. 44.
[16] "Interview", The Foucault Reader, p. 385.
[17] "L'ethique de souci de soi come une pratique de la liberté"
[18] La Volunté de Savoir. Paris: Gallimard, 1976, p. 197.
[19] "Interview", The Foucault Reader, p. 384.
[20] "Interview", The Foucault Reader, p. 343.
[21] L'ethique du souci de soi comme une pratique de la liberté.