RECANTO DAS LETRAS

quarta-feira, 31 de outubro de 2007

ANALISANDO Foucault (PARTE 02): a ética e a obra


Foucault: a ética e a obra*


Um filósofo apesar de si
Não estou convencido de que Foucault queria sempre ser visto como filósofo. Em uma conversa com geógrafos marxistas, ocorrida em 1976, Foucault declarava: "em todo caso, a filosofia, a partir de Descartes, sempre esteve relacionada, no ocidente, com o problema do conhecimento. Não se pode iludir-se... E por mais que se diga que não sou um filósofo, o certo é que me ocupo com a verdade e, apesar de tudo, sou filósofo"[2]. Podemos, então, perguntar: será Foucault um filósofo, apesar dele?
Creio que esse desejo de não ser chamado de filósofo, de guardar esta distância a respeito de si mesmo como filósofo, formava parte de sua prática de pensamento. Isso equivale a dizer que sua relação com a "tradição" não era uma relação de identificação, mas era uma questão aberta, uma questão de prática. Foucault não concebia seu próprio trabalho e nem o de seus predecessores como um todo homogêneo com bordas definitivas ou acabadas, ao contrário, ele investigava as rupturas, as fissuras, as contingências e as re-elaborações no que se apresenta como tradição. O "problema do conhecimento" não se delineia nunca da mesma maneira, e as diversas maneiras de propor este problema têm, elas mesmas, uma história. Trata-se, pois, menos de dar uma resposta definitiva a esta questão que de reinventá-la constantemente. Como disse Blanchot, Foucault era sempre "um homem em marcha".
[3]
A diversidade de "nós", o que estamos discutindo juntos aqui, indica bem a diversidade das relações entre Foucault e a filosofia. Nós, que temos leituras diferentes não só de Foucault, mas também da filosofia. Michel Foucault filósofo não é um só. Mas, quem sabe esta diversidade resulte, já ela mesma, de uma prática filosófica de fio duplo: por um lado, uma relação com aquilo que se dá como "filosófico" e, por outro, com o que não é ou o que não é ainda.
Prática 1: Não supor nem construir uma história geral da "filosofia ocidental", nem tratar de encontrar um lugar para ela. Partir, antes, da idéia de que a tradição não é monolítica e que o mapa das maneiras de pensar é algo que se deve refazer permanentemente. Questionar os esquemas gerais de sua história, dispensá-la, abri-la a outras questões. "Às pessoas que gosto prefiro utilizar... deformar, fazê-las gemer e protestar."
[4]
Prática 2: Sair fora da filosofia, para dizê-lo com as palavras de Deleuze, por a filosofia à prova com as questões que parecem estranhas ou exteriores a ela. Fazer da arte de pensar, uma arte de delimitar novos problemas, ao redor dos quais, se formem conjuntos que não sejam anteriores a eles.
De maneira que, conforme a prática 1 (em suas observações sobre os começos da filosofia contemporânea na França na década de 1930), Foucault distinguia uma filosofia da racionalidade formal de uma filosofia da consciência subjetiva,
[5] a tradição de Cavaillès e a tradição de Sartre. Impressionava-o especialmente o fato de que Cavaillès, que havia dado sua vida à Resistência, houvesse encontrado o compromisso bastante mais simples que os filósofos do compromisso.
Para os filósofos de fala inglesa, habituados a aceitar a crítica de Frege ao psicologismo de Husserl e sua radicalização wittgensteiniana, semelhante distinção poderia parecer trivial. Desde 1935, Cavaillès se interessou por Wittgenstein, Frege e Carnap e, repudiando a filosofia da consciência, estudou os fundamentos da matemática e a teoria dos conjuntos. Os filósofos de fala inglesa não podiam, pois, senão admirar o fato de que Foucault havia tomado o partido de Cavaillès contra Sartre e que havia tratado de sair-se da fenomenologia.
Em troca, esses mesmos filósofos se inteiraram, com assombro, pelos escritos de Foucault da década de 1960 de que a fenomenologia e o positivismo, apesar de seu antagonismo, bem claro, derivam de um fundo "arqueológico" comum; e, ao menos, o que se pode dizer é que se surpreenderam com pela bifurcação descrita em As palavras e as coisas onde o "ser da linguagem" conduz, por um lado Russell e, por outro Freud.
[6]
Como se sabe, Foucault propôs novas leituras de Freud e de Nietzsche: ninguém antes dele havia situado o acontecimento central do pensamento de Freud em sua ruptura com a teoria da degeneração. Ninguém antes dele havia lido Nietzsche em relação com a tradição Bachelard-Canguilhem, com a "nova história" dos Anales, com a questão da ideologia nas lutas da década de 1960 ou também com a história da loucura. Sem embargo, Foucault não era um "nietzscheano"; para ela tratava-se, antes, de reler Nietzsche partindo destas novas questões e não só partindo das questões da década de 1930. Em suma, Foucault queria afrouxar as fronteiras que segmentavam a inteligência filosófica ao introduzir novas questões e ao voltar a pensar aquelas que a história nos tem legado.
Conforme a prática 2, Foucault encontrou essas novas questões em campos tradicionalmente exteriores à filosofia, nos quais os métodos de tratar aos loucos pertencem à história da razão e a arte de construir edifícios pertence à história da ética. Como escrever ao mesmo tempo aos presos e aos filósofos? Em 1975, Foucault explicava: "Para mim, Nietzsche, Bataille, Blanchot, Klossowski representaram maneiras de sair da filosofia", de fazer "permeável e, por tanto, irrisória a fronteira entre o filosófico e o não filosófico".
[7] Porém, para ele, o exterior da filosofia não estava tão somente constituído pelo discurso "literário", mas compreendia, assim mesmo, a medicina do desvio no séc. XIX, assim como a ciência da polícia do séc. XVIII. John Searle, que queria transcrever a arqueologia das enunciações em uma teoria dos speech acts, não contava que Foucault considerasse que a masturbação podia ser objeto de um interesse filosófico? De maneira que, precisamente em seus "ensaios" para abrir a filosofia ao exterior, diria eu que Foucault era filósofo, uma classe de filósofo apesar dele mesmo.

O ethos da filosofia
Em seu prefácio a O uso dos prazeres, Foucault tratou de caracterizar a atitude que tinha a respeito de si mesmo como filósofo e a respeito das tradições filosóficas considerando-as como um ethos, uma maneira de ser filósofo. Sustenta, ali, que o discurso filosófico é sempre ridículo quando quer estabelecer-se como meta-disciplina que fixa as fronteiras legítimas e que ministra a unidade de todas as outras disciplinas. "O que está vivo" na filosofia são antes as tentativas de modificá-la em relação com o que parece estranho à filosofia.
De forma que a obra de Foucault não se desenvolve como uma teoria ou um sistema, está direcionada por periódicas tentativas de reelaboração no que se trata de "de pensar de outro modo o que já se pensava e de perceber o que se tem feito de uma perspectiva diferente e sob uma luz mais clara".
[8] A relação consigo mesmo que se transluz em sua obra, teria, pois, a forma de um exercício pelo qual se chega a ser o que se é ao desprender-se de si mesmo. Aqueles cujo ethos se assimilam a este desprendimento de si, diz Foucault, vivem em um "planeta diferente" daqueles que buscam um ponto fixo de certeza, um caminho autêntico ou uma decisão autêntica. Por isso, na história da filosofia, Foucault não se ata a nenhuma tradição ou a um "nós", mas busca acontecimentos, essa classe de acontecimentos dos quais já não se recobra nunca e que nos transformam sempre. É esta concepção de relação com o si mesmo, como ethos ou como maneira de ser filósofo, que está em jogo na tentativa de Foucault que aponta a reconsiderar as tradições que chamamos éticas.

A ética não é uma moral
A tradição da filosofia ética não nos é dada como um todo unificado. Até o que chamamos de moral judáico-cristã se formou em virtude de uma espécie de collage de fontes pagãs. Múltiplas mudanças afetaram não só os códigos que regulam a conduta, mas a concepção mesma de ética, suas questões centrais, o que a ética supõe verdadeiro sobre nós e as classes de relações que ela supostamente tem com a religião, com a ciência, com a política e com o direito.
Foucault acreditava que aquilo que não se havia estudado suficientemente ou considerado suficientemente na história das origens e das transformações da ética eram as práticas formadoras dos modos de ser. Convinha, então, estudar a história, não da moral, mas da ética. Esse é um tema recorrente em toda a obra de Foucault. Em As palavras e as coisas, Foucault se perguntava se a filosofia podia, ainda, assegurar os códigos morais à maneira das antigas cosmologias (como uma teoria da república, dos objetos políticos ou cívicos): "No caso do pensamento moderno, não há moral possível... o pensamento é em si uma ação, um ato perigoso".
[9]
Esta relação entre pensamento e modo de ser ocupava o centro de seu estudo sobre o tema antropológico na filosofia crítica de Kant. É igualmente esta a questão que orientou sua tentativa de analisar a penalidade, partindo das novas técnicas de "governo" dos indivíduos, técnicas que fizeram da criminalidade tanto um objeto de saber como um modo de ser. Foucault se perguntava se o exercício de poder efetivo não se ocultava sob a ordem jurídica tradicional. Foucault trata de analisar a constituição histórica e material dos sujeitos. No lugar de conceber o sujeito partindo se sua condição política, ele tratou de por no quadro de juízos essa condição e encarar a "produção" do ser, até dos indivíduos.
De maneira que seu modo de conceber a distinção entre ética e moral, difere da distinção neokantiana entre Moralität e Sittlichkeit, oposição sobre a qual se construiu "certo discurso filosófico da modernidade". Pois, para Foucault, não se tratava de incorporar-se em uma bela totalidade natural ou essencial, nem de elevar-se a uma república transcendental racional e normativa. Tampouco se tratava de derivar a solidariedade da racionalidade, nem de recuperar um sentimento perdido da comunidade no seio de uma razão moderna. Tratava-se, antes, de estudar as práticas de si em sua esfera própria e, a partir dali, introduzir a questão do lugar das ditas práticas em uma dada sociedade. Neste sentido, as práticas de si de Foucault se aproximam das formas de vida ordinárias de Wittgenstein, nas quais aquilo que se dá como subjetivo procede de práticas comuns (públicas) transformáveis.
Foucault não se perguntava, então, como as ditas práticas eram veículos das decisões de uma cultura, mas perguntava-se como se poderia explicar que uma cultura lhe havia dado uma determinada posição particular. E porque queria recolocar a questão do ser ético do indivíduo, censurou no Cuidado de Si a idéia vaga do individualismo, invocada para explicar em diferentes épocas fenômenos diversos.
[10] Diz Foucault que convém distinguir as práticas de si, que tomam o indivíduo como objeto de saber e de ação (como no ascetismo cristão), o valor que se atribui ao indivíduo em certos grupos dos quais é membro (como na aristocracia militar) e o valor atribuído à vida privada ou familiar no seio da burguesia do séc. XIX. Foucault também queria distinguir a liberdade individual entre os gregos e a "chatice mais ou menos derivada de Hegel, segundo a qual a liberdade do indivíduo não tem nenhuma importância frente a nobre totalidade da República".[11]
Conceber a ética desde o ponto de vista das práticas de si, permitiu a Foucault um enfoque histórico diferente do postulado pelo pensamento idealista romântico, no qual a constituição do indivíduo passa desde a vontade agostiniana à idéia da vida como obra de arte (descrita por Burckhardt) no Renascimento, para passar logo do cogito cartesiano ao "dandysmo" de Beaudelaire e a confissão analítica. Por o acento na ética e não na moral significava propor a questões das práticas formadoras do indivíduo na relação com o saber, com a política e com o direito modernos.

O pensamento como ética
Se admitimos, pelo menos por hipótese histórica, a distinção entre ética e moral, podemos aplicá-la ao pensamento do próprio Foucault? Mais precisamente, pode-se conceber sua própria prática de pensamento segundo os quatro elementos que Foucault isolou quando se dedicou a estudar a ética como prática de si mesmo?
1. A substância. "O sujeito não é uma substância. É uma forma e essa forma não é sempre, nem em todas partes, idênticas a si mesma..., o que me interessa é precisamente a constituição histórica dessas formas diferentes do sujeito em relação com o jogo da verdade".
[12]
Nesta prática, o que há de ser transformado é a evidência das formas em virtude das quais o sujeito pensa em identificar-se com a verdade; não é a natureza do sujeito o que está em jogo, mas é sua "segunda natureza", não o que está dado, mas aquilo que deixa ao sujeito a possibilidade de dar-se. A substância é o que, no ser do sujeito, está aberto a uma transformação histórica.
2. O modo de subjetivação: é o convite a uma liberdade prática, o que incita a esta transformação. A possibilidade de dar um "novo impulso, o mais vasto possível, a obra sempre inacabada da liberdade".
[13] É a possibilidade de fazer da liberdade uma questão prática e não simplesmente formal, uma liberdade, não dos atos, das intenções ou do desejo, mas a liberdade de escolher um modo de ser.
3. O trabalho ético: os meios de transformação serão os de uma análise crítica que reconstitua as formas do sujeitos em "singularidades transformáveis".
[14] Trata-se de determinar precisamente contra que devemos lutar para liberar-nos e, acima de tudo, para liberar-nos de nós mesmos. Esta é a análise da problematização das "evidências em que se apoiam nosso saber, nosso consentimento, nossas práticas"[15] do qual deriva sempre um "nós necessariamente temporário".[16]
4. O telos: o objetivo desta transformação aberta é a pratica de dizer a verdade, que uma sociedade não pode nem regular nem fazer calar, é a beleza de um traço de si mesmo, e uma atitude crítica a respeito do que nos ocorre e "um desafio a todo fenômeno de dominação".[17]
O trabalho de Foucault, na medida em que todo trabalho filosófico implica um exercício de si mesmo, isto é, uma ética, poderia, pois, resumir-se da seguinte maneira: em nome de uma liberdade prática, dentro daquilo que se dá como formas de experiências possíveis, desenvolver uma análise crítica nominalista como forma de resistência à dominação.

As problematizações
Em seu prefácio a Os usos dos prazeres, Foucault queria, já o dissemos, reconsiderar suas investigações anteriores sob outra luz, a das problematizações. Há uma história do pensamento porque existe uma história dos problemas específicos que o pensamento teve de enfrentar. Que é aquilo que, nas experiências da criminalidade, da enfermidade, da loucura ou da sexualidade se dava de maneira tão problemática que tais experiências chegavam a ser algo que podia e devia ser pensado?
A história foucaultiana da ética não é uma história dos princípios nem de seu modo de legitimação, mas uma história das maneiras de responder a problemas específicos ou singulares. Como se conceberam os obstáculos que se tem de superar para ser bom ou para fazer o que se deve fazer? Como se tem raciocinado o que tem de fazer atendendo ao que se pensa como sendo o mal ou o erro? E mais precisamente, como, partindo de uma análise das problematizações, se pode reconsiderar a tarefa do pensamento em relação com os saberes, com as estratégias da ação [do fazer], com o direito ou com a política?
1. O saber-poder. Como os problemas ou os perigos específicos do si e da sociedade tem chegado a ser objetos de um saber e de uma estratégia possíveis? Essa é a pergunta que formulam as análises de Foucault sobre os sistemas de pensamento nos quais o grande metaconceito é o de "normalidade", uma normalidade que estaria ausente na problematização dos prazeres gregos e que seria específico do racismo "em sua forma moderna, estatal, biologizante".
[18] Como as antigas práticas de si mesmo foram dominadas por este dispositivo normalizador?
2. O direito: Como novos problemas, por exemplo, o seguro contra acidentes, tem chegado a ser o objeto não só de uma nova legislação, mas uma nova maneira de conceber o direito? Há que analisar o direito naqueles pontos em que sua aplicação apresenta problemas. Há que se fazer a história dos estilos do raciocínio jurídico que determinam que classe de objetos podem cair em uma jurisdição que disponha deles. Este é o nominalismo crítico jurídico que propõe François Ewald: não uma filosofia da essência ou da natureza do direito, mas uma história ou das problematizações em virtude dos quais se tem construído uma "experiência jurídica" singular.
3. A política: De que maneira e através de que concepção certos acontecimentos problemáticos se fazem "políticos". Por exemplo, esse acontecimento cujo nome é uma data, 1968.
Para Foucault, a política não é constitutiva das problematizações, pelo contrário, são as problematizações, as que questionam a política e transformam sua concepção. Neste sentido, trata-se menos de achar soluções definitivas aos problemas, do que de saber fazer-los entrar no que se dá como o campo político.
Assim, o declara a questão introduzida por sua análise das problematizações do estado providente-guerreiro (the welfare-warfare state). Como uma nova problematização da vida e da morte, uma nova maneira de governar-se mudaram, não só o funcionamento, mas também a concepção mesma do estado? Como o pensamento "liberal" (as categorias de sociedade civil e estado) surgiu como modo de conceber esta nova biopolítica e como esta, por sua vez, foi problematizada? "Minhas maneiras de encarar as questões políticas é da ordem da problematização, o qual implica no desenvolvimento de uma esfera de ações, de práticas e de pensamento que, segundo me parece, propõem problemas para a política".
[19]
Porém, a análise destes perigos é ela mesma perigosa. Com efeito, essa análise se realiza em situações que escapam ao raciocínio dedutivo-normativo. Por exemplo, quando se vê que há algo que fazer sem que se saiba ainda o que é. Então se abre um espaço, não de dedução, mas de análise e de questionamento, espaço no qual se trata de determinar um perigo que falta, ainda, identificar e ante o qual, se haverá de reagir. A "decisão ético-política" consiste em "determinar qual é o verdadeiro perigo". "Quisera fazer a genealogia dos problemas, das problemáticas. Não quero dizer que tudo está mal, mas digo que tudo é perigoso, o que não é o mesmo. Se tudo é perigoso, então sempre temos algo a fazer".[20]

As possibilidades
A filosofia de Foucault versa sobre o que se pode pensar e o que se pode mudar no que se pensa. O nexo entre o possível e o pensável se remonta a Kant. Foucault quis introduzir o acontecimento ou o sucesso da filosofia crítica e arriscar uma história crítica do pensamento. Pois se a experiência é possível pelas categorias e se as categorias mudam, logo as possibilidades mudam, igualmente.
A tarefa da crítica se converte, pois, na tarefa de inserir os acontecimentos no que se dá como evidência, esses acontecimentos que fazem concebíveis as coisas. Daí que em Arqueologia do Saber, Foucault fale de um a priori histórico, um a priori, não das fronteiras legítimas, mas das possibilidades históricas da experiência. Para Foucault, como para Kant, a liberdade não é uma possibilidade ética entre outras; é a possibilidade mesma da ética. "A ética é a forma deliberada que toma a liberdade".
[21] Sem embargo, contrariamente a Kant, para Foucault, esta liberdade não é supra-sensível, mas histórica. Não procede de uma república racional de sujeitos autônomos, mas procede de um questionamento incessante dos fatos históricos da identidade. Foucault queria fazer uma história, não só do que é verdadeiro ou falso, mas do que pode sê-lo, não do que se tem de fazer, mas do que se pode fazer; não das maneiras de viver, mas das possibilidades de vida. Na perspectiva das possibilidades históricas do saber, da ação e da identidade subjetiva, o saber se delimita, segundo Foucault, pela ciência, o poder pela política e a ética pela moral; e nesta perspectiva das relações entre os saberes, os poderes e os modos de ser nunca estão dados, mas sempre teremos que buscá-los, nunca são essenciais ou necessários, mas sempre são sempre históricos e transformáveis.
Ao historiar a questão crítica, Foucault descobriu uma espécie de impossibilidade que é, não lógica, mas histórica, a impossibilidade não de um círculo quadrado ou de um deus inexistente, mas a impossibilidade do que já não é ou do que ainda não é, ainda que seja possível pensá-lo. Não o que tem sentido, mas o que ainda não tem ou já não o tem mais. É esta coação ou esta exclusão histórica o que o trabalho do pensamento deve fazer ver. Até é lícito pensar que a impossibilidade em questão já estava em gérmen no que Foucault chamava "a ausência de obra" na História da Loucura.
Porém, mais profundamente, o trabalho crítico de Foucault relativo ao campo das possibilidades históricas singulares abre novas possibilidades filosóficas e esboça uma nova maneira de conceber a relação entre filosofia e história, de encarar as relações entre ensaios filosóficos e maneiras de ser; em suma, uma nova maneira de fazer filosofia.
* Este texto foi apresentado no Colóquio RENCONTRE INTERNATIONALE. Michel Foucault Philosophe - Paris, 9, 10, 11, janvier. Paris, Seuil, 1989. (Tradução de Wanderson Flor do Nascimento)
[1] John Rajcham é Professor de Filosofia do Massachussets Institute of Technology – New York University
[2] "Question à Michel Foucault", Hérodote, n. I, janeiro de 1976, p. 74.
[3] Foucault tel que je l'imagine, Montpellier, Fata Morgana, 1986, p. 17.
[4] "Quel corps?" traduzido do inglês, Power and Knowledge, pp. 53-54.
[5] "La vie: l'experiénce et la science", Revue de métaphysique et de la morale, janeiro de 1985.
[6] Les Mots et les Choses. Paris: Gallimard, 1966, p. 312.
[7] "Passe-frontières de la philosophie", Paris: Le monde, 6 de setembro de 1986.
[8] L' usage des plaisirs. Paris: Gallimard, 1984, p. 17.
[9] Les Mots et les Choses, p. 339.
[10] Le Souci de soi, Paris: Gallimard, 1984, p. 56.
[11] "L'ethique du souci de soi comme un pratique de la liberté", Concórdia: Internationale Zeitschrift für Philosophie, n. 6, 1984.
[12] Ibid.
[13] "What is Enlightenment?, Foucault Reader, New York, Pantheón, 1984, p. 46.
[14] "Première préface à L'usage des plaisirs", The Foucault Reader, p. 334.
[15] L'impossible prison. Paris: Ed. du Seuil, 1980, p. 44.
[16] "Interview", The Foucault Reader, p. 385.
[17] "L'ethique de souci de soi come une pratique de la liberté"
[18] La Volunté de Savoir. Paris: Gallimard, 1976, p. 197.
[19] "Interview", The Foucault Reader, p. 384.
[20] "Interview", The Foucault Reader, p. 343.
[21] L'ethique du souci de soi comme une pratique de la liberté.

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